Por Delfin Netto; publicado no Valor Econômico de 29/01/2008
Os modelos que os economistas construíram para mimetizar o funcionamento do sistema econômico são úteis e mesmo indispensáveis para organizar nosso pensamento diante da complexa (às vezes caótica) realidade. Com formidáveis hipóteses simplificadoras: 1) um sistema produtivo que consiste na ligação simples entre o produzido (em geral um único produto que representa a miríade de bens e serviços) e os fatores de produção; 2) um único consumidor com preferência conhecida (que representa a miríade de consumidores); 3) uma relação contábil que mostra a dinâmica da formação do estoque de capital; e 4) um comportamento maximizante dos agentes, que lhes permite simular como evolui no tempo o volume produzido (que, por analogia, seria o PIB).
Esses modelos mostram que o sistema produtivo tem uma tendência endógena de flutuação. Quando submetidos a choques aleatórios reproduzem movimentos cíclicos com período (freqüência) e amplitude (profundidade) variáveis. É assim mesmo numa economia sem o instituto do crédito e sem um "mercado" onde se transaciona o ativo representativo do capital físico. A introdução desses elementos financeiros sugere que as flutuações podem mudar de freqüência e de profundidade. No limite, eles podem perturbar a evolução da produção real de tal forma que passam a controlá-la introduzindo "ciclos" de otimismo e pessimismo.
O ciclo de otimismo tende a convergir para uma "bolha" que, mais dia menos dia, acaba se autodissolvendo, ou para uma interrupção do fluxo de financiamento produzido por algum fato que gera uma desconfiança que paralisa o crédito. Nos dois casos, depois de ter acelerado o desenvolvimento da economia real (aquela que produz os bens e serviços físicos e determina o nível de emprego) ela cobra um preço alto na forma de uma recessão pelo "exuberante" estímulo que produziu.
Ignorando o fato de que estamos passando de uma situação construída num modelo teórico para a realidade em que vivemos, parece possível afirmar que a história econômica desde a época napoleônica mostra que em toda grande interrupção do sistema produtivo real nunca faltou a importante contribuição do sistema financeiro. É o caso que estamos assistindo com os descuidados créditos subprime do setor imobiliário americano.
A tendência do sistema financeiro é assumir vida própria. Ele surgiu para auxiliar o funcionamento do sistema produtivo e terminou por dominá-lo. É notável, também, sua capacidade de criar sacerdotes que estabelecem a religiosa "ideologia dominante" (com o perdão do velho Gramsci), ou seja a crença na inutilidade e prejudicialidade de qualquer tentativa de controle dos "mercados". O fato é que o sistema financeiro parece incapaz de controlar seus próprios agentes. Estes, na verdade, obedecem a um único princípio: realizar o maior lucro possível, no menor tempo possível, embolsar os bônus e cair fora...
As instituições financeiras recusam a necessidade de um controle externo em nome da ineficiência e atraso do progresso operacional que gerariam, mas não têm sido capazes de manter sequer o controle interno sobre seus agentes. A prova cabal disso é que entre 1987 e 2007 contam-se pelo menos 29 fraudes ou abusos de confiança de agentes financeiros que tiveram repercussão internacional. Algumas levaram à falência instituições centenárias, como foi o caso do Barings Bank. A sua freqüência não revela uma substancial melhora dos controles internos, como se vê na tabela abaixo, onde se revela o número de fraudes mais conhecidas e de repercussão internacional (algumas até sobre a economia real).
É demais! Uma fraude ou, na melhor hipótese, uma imperícia desastrosa em busca de "bônus" produziram um desastre de dimensão internacional a cada nove meses! Espera-se que um resultado positivo da crise atual há de ser um importante aperfeiçoamento dos mecanismos de controles internos e, principalmente, do sistema financeiro. O primeiro em seu próprio interesse. O segundo em benefício do uso eficiente de sua sofisticação operacional, sem prejudicar o sistema produtivo com as freqüentes perturbações que tem produzido no seu curso.
Os fatos revelam a falsidade da ideologia propagada pelos "sacerdotes" que toda e qualquer regulação estatal (quer na economia real quer na financeira) é maléfica. Em primeiro lugar, a verdade é que não existe exemplo na história econômica mundial que aponte um país desenvolvido ou em vias de desenvolvimento com sucesso que não tenha sido estimulado por uma política industrial-exportadora pró-ativa. Em segundo lugar, é clara a ausência de um imperativo moral categórico nas atividades financeiras (em si mesmas e em seus agentes) que possa garantir a completa desregulação. É a ausência desse princípio que exige a coerção da lei (isto é, da intervenção estatal) para obrigá-las a respeitar o interesse social.
Antonio Delfim Netto é professor emérito da FEA-USP, ex-ministro da Fazenda, Agricultura e Planejamento. Escreve às terças-feiras
Nenhum comentário:
Postar um comentário