segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Refazendo uma análise do legado de Greenspan

Estadão - 12/10/2008

Proeminente financista George Soros evita usar os contratos financeiros conhecidos como derivativos "porque não entendemos realmente como funcionam". Felix G. Rohatyn, banqueiro de investimento que salvou Nova York de uma catástrofe financeira na década de 70, qualificou os derivativos de "bombas de hidrogênio" em potencial. E há cinco anos Warren E. Buffett, previdentemente, observou que os derivativos eram "armas financeiras de destruição em massa, contendo perigos que, embora hoje latentes, são potencialmente letais".

Um importante personagem do mundo das finanças, contudo, por longo tempo entendeu o contrário. E suas opiniões tiveram enorme influência nos debates sobre a regulamentação e o uso dos derivativos - contratos exóticos que prometem proteger os investidores contra perdas, com isso estimulando práticas mais perigosas que levaram à crise financeira. Por mais de uma década, o ex-presidente do Federal Reserve (banco central americano) Alan Greenspan se opôs a que os derivativos fossem objeto de vigilância no Congresso ou em Wall Street.

"O que concluímos com os anos no mercado é que os derivativos têm sido um veículo extraordinariamente útil para transferir o risco daqueles que não deveriam assumi-lo para aqueles que assim o desejam e são capazes de agir assim", disse Greenspan ao Comitê de Bancos do Senado, em 2003. "Achamos que seria um erro" regulamentar de modo ainda mais forte esses contratos.

Hoje, mesmo com o mundo apanhado por uma tempestade econômica que Greenspan descreveu recentemente como "o tipo de crise financeira devastadora que ocorre apenas uma vez num século", sua fé nos derivativos continua inabalável.

O problema não é que os contratos falharam, diz ele. Mais exatamente, as pessoas que os utilizaram é que ficaram gananciosas. Uma falta de integridade engendrou a crise, disse Greenspan num discurso proferido há uma semana na Universidade Georgetown, sugerindo que aqueles que negociaram com derivativos não eram tão confiáveis como "o farmacêutico que avia a receita encomendada pelo nosso médico".

Mas outros têm opinião totalmente diferente de como os mercados globais se livram da crise e do papel que Greenspan teve na criação desse tumulto.

"Claramente, os derivativos são a peça central da crise e Greenspan foi o principal proponente da desregulamentação desses derivativos", disse Frank Partnoy, professor de direito na Universidade de San Diego e especialista no campo da regulamentação financeira.

O mercado de derivativos hoje é de US$ 531 trilhões, comparado com seu valor em 2002, de US$ 106 trilhões. Com a finalidade, teórica, de limitar o risco e proteger de problemas financeiros, esses contratos, pelo contrário, atiçaram a incerteza e, de fato, propagaram o risco em meio à dúvida sobre como as empresas os avaliam. Para muitos economistas, se Greenspan tivesse agido de modo diferente como presidente do Fed, de 1987 a 2006, a atual crise poderia ter sido evitada ou contida.

Com o passar dos anos, Greenspan ajudou a capacitar um ambicioso experimento americano, permitindo que as forças de mercado atuassem livremente. Hoje, o país enfrenta as conseqüências.

Os derivativos foram criados para atenuar - ou, no jargão de Wall Street, "proteger" as perdas com investimento. Por exemplo, alguns dos contratos protegem os detentores de dívida contra perdas no caso de títulos hipotecários. (O nome vem do fato de que seu valor "deriva" de ativos subjacentes como ações, títulos e commodities.)

Muitos indivíduos têm um derivativo comum: o contrato de seguro das próprias casas. Numa escala maior, tais contratos permitem que empresas e instituições financeiras assumam riscos que elas, do contrário, deveriam evitar - por exemplo, emitindo mais hipotecas ou dívida corporativa. E os contratos podem ser negociados, limitando o risco, mas também aumentando o número de partes expostas caso haja problemas.

Durante a década de 90, alguns já diziam que os derivativos tinham se tornado tão vastos, entrelaçados e inescrutáveis que requeriam uma fiscalização federal para proteger o sistema financeiro. Em reuniões com autoridades federais, aparições no Capitólio e discursos acompanhados com muita atenção, Greenspan disse confiar na boa vontade de Wall Street para auto-regular-se ao abolir as restrições.

Desde que o mercado imobiliário começou a entrar em colapso, a atuação de Greenspan tem sido revista. Economistas de todo o espectro ideológico criticaram sua decisão de permitir que o mercado imobiliário continuasse a se desenvolver por meio do crédito barato e taxas de juros baixas, em vez de conter os aumentos de preços com taxas mais altas. Outros o criticaram por não disciplinar as instituições que emprestavam indiscriminadamente.

Mas, qualquer que seja o fim da história quanto a essas decisões, o legado de Greenspan pode, no final, repousar num fenômeno mais profundamente incrustado e muito menos examinado: a espetacular ascensão e a calamitosa queda do comércio de derivativos.

FÉ NO SISTEMA

Alguns analistas acham injusto acusar Greenspan pela crise. "A idéia de que Greenspan poderia ter gerado um resultado totalmente diferente é ingênua", disse Robert E. Hall, economista da conservadora Hoover Institution, grupo de pesquisa em Stanford. Greenspan rejeitou pedidos de entrevista. Sua porta-voz remeteu as respostas a trechos do livro de memórias dele, A Era da Turbulência, em que sublinha suas crenças.

Como o presidente com mais tempo à frente do Fed, Greenspan pregou os poderes transcendentes e criadores de riqueza do mercado. Liberal convicto, uma das pessoas que influenciaram sua formação foi Ayin Rand, que retratou o poder coletivo como força demoníaca contra o egoísmo esclarecido dos indivíduos. Mas ele também confiou que os agentes dos mercados financeiros agiriam com responsabilidade.

Um exame de mais de duas décadas da carreira de Greenspan no campo da regulamentação financeira, e dos derivativos em particular, revela a que ponto ele atrelou a saúde da economia do país a essa crença. À medida que o nascente mercado de derivativos se firmava no início dos anos 90, e nos anos subseqüentes, os críticos denunciavam a ausência de regras que obrigassem as instituições a divulgar suas posições e criar em separado fundos como reserva contra apostas equivocadas.

Quase sempre Greenspan - figura reverenciada, apelidada afetuosamente de Oráculo - proclamava que os riscos poderiam ser manejados pelos próprios mercados. "As propostas para uma regulamentação mesmo minimalista foram basicamente rechaçadas por Greenspan e diversos membros do Tesouro", relembra Alan S. Blinder, ex-membro da diretoria do Fed e economista na Universidade de Princeton. "Lembro dele sempre aclamando, consistentemente, os derivativos."

Arthur Levitt Jr, ex-chairman da Comissão de Valores Mobiliários, diz que Greenspan se opôs à regulamentar os derivativos por causa de um desprezo pelo governo. Segundo Levitt, a sua autoridade e o conhecimento das finanças globais convenceram legisladores menos especializados na área financeira a seguirem sua liderança.

"Sempre achei que titãs da nossa legislatura não queriam deixar aparente sua incapacidade de compreender conceitos apresentados por Greenspan", disse Levitt. "Não me lembro de ninguém dizendo: "O que você quer dizer com isso, Alan?".

Contudo, depois de um longo tempo, alguém questionou. Em 1992, Edward J. Markey, democrata de Massachusetts que presidiu o subcomitê de telecomunicações e finanças da Câmara, pediu ao Escritório de Contabilidade Geral para fazer um estudo sobre os riscos dos derivativos. Dois anos depois, o Escritório apresentou seu relatório, identificando "fraquezas e brechas significativas" na fiscalização dos derivativos.

"Uma falência repentina ou uma saída abrupta dos negócios de algumas dessas grandes empresas corretoras dos Estados Unidos pode causar problemas de liquidez nos mercados e apresentar riscos também para outros, incluindo bancos garantidos no plano federal, e para o sistema financeiro como um todo", declarou Charles A. Bowsher, chefe do Escritório, ao depor ao comitê de Markey, em 1994. "Em alguns casos, a intervenção pode resultar num socorro financeiro pago ou garantido pelos contribuintes."

No seu depoimento, Greenspan foi tranqüilizador. "Os riscos nos mercados financeiros, incluindo os mercados de derivativos, estão sendo regulados pelas partes envolvidas, em nível privado. Não há nada na regulamentação federal que, por si, seja superior à regulamentação do próprio mercado."

Greenspan advertiu que os derivativos poderiam ampliar as crises porque reuniam fortunas de muitas instituições aparentemente independentes. "A mera eficiência envolvida neste caso significa que, se uma crise tiver que ocorrer, ela é transmitida a um ritmo mais rápido e com uma virulência maior." Mas qualificou a possibilidade como "extremamente remota", acrescentando que o "risco faz parte da vida". No fim daquele ano, Markey apresentou um projeto requerendo maior regulamentação dos derivativos. Nunca foi aprovado.

RESISTÊNCIA AOS ALERTAS

Em 1997, a Comissão Reguladora de Operações a Futuro com Commodities (CFTC), agência federal que regula os negócios de opções e futuros, começou a analisar uma regulamentação do mercado de derivativos. A comissão, na época presidida pela advogada Brooksley E. Born, solicitou análises sobre qual a melhor maneira de fiscalizar determinados derivativos.

As opiniões de Born provocaram feroz oposição de Greenspan e Robert E. Rubin, então secretário do Tesouro. Advogados do Tesouro concluíram que a mera discussão de novas regras ameaçava o mercado de derivativos. Greenspan alertou que o excesso de normas poderia prejudicar Wall Street, levando operadores a transferir seus negócios para o exterior.

"Greenspan disse a Born que ela não sabia o que estava fazendo e que provocaria uma crise financeira", disse Michael Greenberger, diretor sênior da Comissão.

Born não quis comentar a respeito. Rubin, hoje o mais alto executivo do Citigroup, diz que defendeu a regulamentação dos derivativos - particularmente o aumento das reservas para possíveis perdas - mas não via uma maneira de fazer isso quando estava na direção do Tesouro.

Em 21 de abril de 1998, a alta cúpula dos reguladores financeiros federais reuniu-se numa sala no prédio do Tesouro para discutir a proposta da advogada Born. Rubin e Greenspan imploraram para que ela reconsiderasse sua posição, segundo Greenberger e Levitt.

Brooksley Born levou sua proposta adiante. Em 5 de junho de 1998, Greenspan, Rubin e Levitt apelaram ao Congresso para evitar que Born continuasse a agir até que outros agentes reguladores elaborassem suas recomendações. Levitt diz que hoje lamentaa decisão.

Em novembro de 1999, a alta cúpula dos reguladores, incluindo Greenspan e Rubin, recomendou que o Congresso retirasse permanentemente a autoridade reguladora da CFTC no campo dos derivativos. Greenspan usou seu prestígio para convencer o Congresso.

À medida que o mercado se agitava com altas históricas, a opinião dominante era de que os bons tempos se deviam em grande parte à mão firme de Greenspan. "Você sairá como o maior chairman da história do Fed", disse o senador Phil Gramm, republicano do Texas, presidente do Comitê de Bancos do Senado quando Greenspan esteve lá em fevereiro de 1999.

As credenciais e a confiança de Greenspan reforçaram sua reputação - ajudando-o a convencer o Congresso a repelir leis que separavam as atividades bancárias de investimento das comerciais, para reduzir o risco no sistema financeiro.

"Ele tinha um modo de falar que fazia você achar que ele sabia do que estava falando", disse o senador Tom Harkin, democrata de Iowa. "Ele conseguia dizer coisas de tal maneira que as pessoas não o questionavam, como se ele soubesse tudo. Ele era o Oráculo, e quem era você para questionar?" Em 2000, Harkim perguntou o que podia acontecer se o Congresso debilitasse a autoridade da CFTC.

"Se for feita essa exclusão e alguma coisa imprevista acontecer, quem fará alguma coisa a respeito?", perguntou a Greenspan numa audiência. Greenspan respondeu que se podia confiar em Wall Street. "Existe um compromisso fundamental de que tipo de economia você deseja ter", disse ele. "Você pode ter uma quantidade imensa de regras e eu garantirei que não vai haver erro, mas também que nem tudo vai dar certo."

No fim daquele ano, em outra audiência no Congresso sobre o boom das fusões, ele disse que Wall Street tinha subjugado o risco. "O senhor não está preocupado com essa crescente concentração de riqueza a ponto de que, se uma dessas enormes instituições falir, isso terá um impacto terrível sobre a economia nacional e global?" indagou Bernard Sanders, deputado independente de Vermont.

"Não, não estou", respondeu Greenspan. "Acho que o crescimento geral nas grandes instituições ocorreu no contexto de uma estrutura implícita dos mercados em que muitos dos riscos maiores estão dramática e plenamente protegidos."

A Câmara aprovou por unanimidade projeto de lei que mantinha os derivativos livres da fiscalização da CFTC. O senador Gramm anexou o documento limitando a autoridade a um projeto legal de 11 mil páginas, que o Senado aprovou e foi promulgado pelo presidente Clinton.

Contudo, investidores experientes como Buffet continuaram a fazer advertências sobre os derivativos, como o fez em 2003, na carta anual aos acionistas da sua empresa, a Berkshire Hathaway. "Um grande volume de risco, particularmente do crédito, se concentrou nas mãos de poucos negociantes de derivativos", escreveu. "As dificuldades de um deles podem rapidamente se propagar." Mas os negócios continuaram.

E quando Greenspan começou a ouvir falar de uma bolha imobiliária descartou a ameaça. Wall Street estava usando derivativos, disse ele num discurso de 2004, para dividir os riscos com outras instituições.

O risco compartilhado, desde então, transformou-se num vírus. À medida que a crise imobiliária crescia e as hipotecas deixaram de ser resgatadas, os derivativos na realidade amplificaram a queda.

A debacle de Wall Street que engoliu empresas como Bear Stearns e Lehman Brothers e colocou em perigo a AIG, gigante do setor de seguros, foi motivada pelo fato de que essas instituições e seus clientes estavam ligados pelos derivativos.

Nos últimos meses, à medida que a crise financeira ganhava ímpeto, as aparições públicas de Greenspan têm sido menos freqüentes. Seu livro de memórias foi lançado em meados de 2007, quando o desastre se formava. Quando a versão de bolso foi lançada este ano, Greenspan escreveu um epílogo que é uma espécie de resposta: "O gerenciamento dos riscos nunca consegue chegar à perfeição".

Os vilões foram os banqueiros, em cujo interesse pessoal ele tinha apostado. "Eles apostaram que podiam continuar aumentando suas posições arriscadas e ainda vendê-las antes do dilúvio", escreveu. "Muitos estavam errados." Nenhuma intervenção federal foi organizada para contê-los, mas Greenspan não lamenta. "Governos e bancos centrais não podiam ter alterado o curso desse boom."

* O autor escreve no ?The New York Times?

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