quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

Brasil e Coréia

Delfim Netto

19/02/2008 - Valor Econômico

Em meados de 1961, o general Chung Hee Park assumiu o controle da junta militar coreana que havia deposto o governo eleito. Em seguida elegeu-se três vezes (1963, 1967 e 1971). Acabou assassinado num golpe de Estado em 1979. O regime político na Coréia do Sul continuou fechado até 1988, quando se instalou a "Sexta República" como uma democracia multipartidária. No Brasil, entre 1970/72, a economia crescia à taxa de 11,2%, a inflação havia caído de 19,3% para 15,7% e as exportações cresciam à taxa anual de 20,7%. O vetor portador do crescimento tinha três componentes: 1) um vigoroso mercado interno; 2) um obsessivo programa industrial-exportador; e 3) um forte suporte creditício e tecnológico ao setor agrícola. A base macroeconômica dessa política foi a ampla reforma feita na organização nacional entre 1964/67.

Em 1972, um amigo, em cujo depoimento confio absolutamente, teve uma longa conversa com o general Park, recém-reeleito. Este conhecia a experiência brasileira e a considerava pouco ambiciosa. E mais, inadequada para a Coréia, devido às formidáveis diferenças históricas, geográficas, culturais e de recursos naturais dos dois países. Em 1972, o Brasil tinha 98 milhões de habitantes, e a Coréia, 34 milhões.

Park expôs o programa de desenvolvimento que tinha em mente. Falou de seis setores que atacaria simultaneamente. Deu ênfase ao fato que eles seriam "protegidos" (com taxa de câmbio, tarifas e crédito barato) até adquirirem musculatura para serem expostos à competição do mercado externo: 1) a indústria do aço; 2) a indústria pesada de máquinas, ferramentas e equipamentos; 3) a indústria química; 4) a indústria naval; 5) a indústria eletrônica; e 6) a indústria automobilística. Ele tinha uma idéia clara de onde iria instalar tais indústrias e quais grupos (ou famílias) locais seriam "escolhidos" para realizar cada tarefa. Em 1971, a Coréia havia exportado US$ 1,13 bilhão (o Brasil, US$ 2,9 bilhões). Park afirmou que esperava, no fim da década, que 50% das exportações coreanas fossem de produtos daqueles setores.

Ao meu amigo tudo pareceu um lindo sonho com baixa probabilidade de se tornar realidade. A Coréia vinha fazendo progresso e tinha algumas condições iniciais interessantes: uma cultura milenar, uma distribuição de renda mais razoável (havia feito a reforma agrária) e um nível melhor de educação, mas tinha, como nós, um problemático passado colonial. Uma reflexão cínica levou-o a suspeitar que, no fundo, o que Park realmente queria era dar à Coréia uma certa "autonomia militar" (que se confirmou depois quando ela transformou-se, juntamente com a França e o Japão, em exportadora de tecnologia para produzir energia nuclear). Em janeiro de 1973, Park anunciou à nação seu "programa de industrialização": o mesmo exposto acima! Suas projeções para 1980, que pareciam sonho, foram amplamente superadas.

Com parcerias, país seria hoje maior produtor global de aço

Meu amigo nunca esqueceu a capacidade e a inteligência de Park de "ver" o futuro. Ele certamente foi um déspota pouco benevolente, mas soube aproveitar a oportunidade que a expansão mundial lhe ofereceu para desenvolver a Coréia. Em 1972, o seu PIB per capita (medido em paridade do poder de compra) era uma fração do nosso. Hoje, é 2,5 vezes maior.

Por que essa história agora? Por quatro motivos: 1) porque ela mostra que a nação que não se pensa 25 anos à frente será sempre apenas o que os outros fizeram dela; 2) porque é um contrafactual ridículo sugerir que o desenvolvimento coreano teria sido mais eficiente se feito com "os preços certos estabelecidos pelos mercados". Sejamos minimamente honestos: o "mercado" jamais o teria realizado, porque nenhum investidor privado correria os seus riscos; 3) porque é ainda mais falso e ilusório supor que ele hoje possa ser repetido, como alguns ainda sugerem; e 4) porque a Coréia (como a China agora) não usou o "Estado-Produtor", mas o "Estado-Indutor", cooptando o setor privado, que é o que o Brasil precisa fazer, "sem medo de ser feliz"...

É inteiramente óbvio que, se em lugar de insistirmos na Siderbras, por exemplo, tivéssemos feito parcerias (ainda que tenebrosas, como as coreanas e as chinesas!) com dois ou três investidores privados (nacionais ou estrangeiros), seríamos hoje, provavelmente, o maior produtor de aço do mundo, em lugar do maior catador de minério de ferro... O que deu certo no passado (estradas, hidrelétricas, portos) foi exatamente o que o Estado contratou com o setor privado!

Deve ser claro que pensar o Brasil 25 anos à frente exige esquecer definitivamente o "Estado-Produtor", esmagado pela força de gravidade da massa corporativa que o parasita. É imperativo continuar a transferir com a maior urgência possível o "Estado-Produtor" da infra-estrutura para o setor privado, com leilões competitivos transparentes e eficientes. E controlá-lo através de agências independentes, que garantam a continuidade da concorrência e protejam os consumidores.

Para quem ainda tem dúvida sobre a ineficiência do "Estado-Produtor", mesmo naquilo que só ele pode fazer (bens públicos), recomendo a leitura da magnífica monografia "Estudo Comparativo das Despesas Públicas dos Estados Brasileiros" (de Júlio Brunet, Ana Berlê e Clayton Borges) para a qual chamou a atenção a excelente jornalista Cláudia Safatle, do Valor. Imaginem o que seria ele fazendo estradas, hidrelétricas, comunicação, saneamento, portos etc...

Antonio Delfim Netto é professor emérito da FEA-USP, ex-ministro da Fazenda, Agricultura e Planejamento. Escreve às terças-feiras

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