O bom momento das vendas internas está acabando; pagaremos caro por acreditar nos Panglosses locais
Folha de São Paulo, 19/11/2007
ENQUANTO a crise financeira nos Estados Unidos se aprofunda, os juros interbancários sobem, as pessoas endividadas com hipotecas perdem suas casas e os consumidores americanos começam a perder sua confiança na economia, avolumando-se as perspectivas de recessão no país, os brasileiros comemoram um crescimento de cerca de 5% do PIB (Produto Interno Bruto) estimado para este ano, e a minha impressão é a de que vivo no país do dr. Pangloss - no melhor dos mundos possíveis.
Essa euforia local é ainda mais surpreendente porque, se os 5% são uma boa taxa em comparação com os anos anteriores, é uma taxa modesta em relação aos grandes países em desenvolvimento que estão crescendo em média quase o dobro desse número.
Dentro desse quadro, o jornal "Valor" publicou recentemente duas reportagens, em uma mesma edição, que pareciam contraditórias. Uma delas reportava, com precisão, as crescentes dificuldades para exportar que a taxa de câmbio, cada vez mais sobrevalorizada, está causando às empresas industriais: um grande número delas já parou de fazê-lo, enquanto outras estão diminuindo o componente nacional dos bens que produzem. A outra reportagem, entretanto, falava nas boas vendas e nos lucros elevados que as empresas industriais estão apresentando.
Digo que essas duas notícias são apenas aparentemente contraditórias porque fazem parte de um todo coerente que não é difícil compreender. A apreciação crescente da taxa de câmbio é o resultado da combinação perversa da "doença holandesa" - que leva a taxa de câmbio para o nível compatível com a lucratividade das commodities beneficiadas com amplos recursos naturais - com as entradas de capitais especulativos e de investimentos diretos que causam diretamente essa apreciação. À medida que isso acontece, as exportações industriais diminuem, enquanto aumentam as importações. Entretanto, ao mesmo tempo em que a apreciação, no médio prazo, vai causando o lento processo de desindustrialização prematura pelo qual o país vem passando desde 1990, essa mesma baixa da taxa de câmbio aumenta os salários reais - aumenta o poder aquisitivo de trabalhadores recebendo os mesmos salários nominais - e, com isso, aumenta a demanda de bens industriais para o mercado interno.
É esse fato que explica a prosperidade da indústria brasileira neste segundo semestre de 2007. É uma prosperidade real, já que as vendas para o mercado interno são boas, mas é uma prosperidade precária, que resulta do aumento dos salários reais devido à apreciação do câmbio e do fato de que os importadores de bens de consumo não-convencionais (ou seja, de bens que não são importados regularmente) ainda não lograram aumentar decisivamente suas importações.
Os aumentos das importações decorrentes de apreciação começam em geral por commodities (que importamos pouco), depois por bens de capital (que já estamos importando muito), depois por bens de consumo convencionais (vinhos, por exemplo), e só em uma última etapa atingem os bens convencionais. Como essa etapa ainda não se realizou, as empresas industriais brasileiras estão aproveitando o aumento artificial dos salários para vender no mercado interno. Está claro, porém, que esse tempo está acabando, e, de outro lado, a desaceleração da economia americana já está em curso.
Pagaremos caro por acreditar nos Panglosses locais.
LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA , 73, professor emérito da Fundação Getulio Vargas, ex-ministro da Fazenda, da Reforma do Estado e da Ciência e Tecnologia, é autor de "Macroeconomia da Estagnação: Crítica da Ortodoxia Convencional no Brasil pós-1994".
Internet: www.bresserpereira.org.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário