sex, 18/07/2014 - 14:26
Um diagnóstico sobre a dramática situação do Sistema Alto Tietê
Após fazer declarações confiantes a respeito da segurança hídrica do Alto Tietê por meses, pela primeira vez o governador Geraldo Alckmin admitiu, no último fim de semana, a realização de estudos para o aproveitamento do volume morto do Sistema Alto Tietê. Não é para menos, já que, em termos percentuais, o esvaziamento dos seus reservatórios é ainda maior do que o observado para o Sistema Cantareira (nos últimos dois meses, o primeiro perdeu 9,6 pontos percentuais da sua capacidade, e o segundo, 8,8 pontos) – que tem sido, desde a declaração da existência de uma crise, muito mais priorizado nas análises e matérias jornalísticas.
Essa priorização não é por menos: de fato, o Cantareira é o sistema produtor mais relevante do ponto de vista do seu alcance populacional: são 14 milhões de beneficiados, ao passo em que o Alto Tietê atende a quase 5 milhões de habitantes. Mas há, também, um problema de transparência: são muito mais abundantes os dados publicizados sobre o sistema maior, possivelmente em razão de sua gestão ser compartilhada – as informações disponibilizadas diariamente pelo Comitê Anticrise, formado por técnicos da ANA, DAEE e SABESP, são consideravelmente mais completas do que as apresentadas na seção de transparência da SABESP (também responsável pelo Alto Tietê). Talvez, por sinal, este seja um caso bem sucedido de competição administrativa entre governo federal e estadual pela transparência – o que não ocorre no caso do Alto Tietê. Talvez, também, a falta de atenção dada a esse sistema também derive do fato de abastecer zonas periféricas de São Paulo, ao passo em que o Cantareira produz para regiões urbanas centrais em vários aspectos: Consolação, Jardins, Alto de Pinheiros, Higienópolis, Vila Mariana, etc. No entanto, caso seja essa a razão, comete-se uma negligência fundamental: é na região abastecida pelo Alto Tietê onde se encontram algumas das maiores indústrias de São Paulo.
O foco deste texto, no entanto, não está na qualidade da abordagem do tema, mas sim em sua gravidade, a meu ver tão ou mais considerável do que a observada para o Cantareira. Primeiramente, vale explicar um pouco mais o Alto Tietê: trata-se de um sistema responsável pela produção de cerca de 15 m³/s (um pouco menos da metade da capacidade nominal do Cantareira). Ele é formado principalmente a partir de 5 represas: Paraitinga, Ponte Nova, Biritiba-Mirim, Jundiaí e Taiaçupeba (pela ordem da trajetória da água, até seu envio para consumo). Pode-se dizer que esse sistema é ainda mais complexo do que o Cantareira, já que conta com uma estação elevatória que é responsável por transportar a água das duas primeiras represas até a Biritiba-Mirim. Em outras palavras, só a partir daí é que o sistema funciona por gravidade. O desenho abaixo esclarece as informações acima:
Um outro aspecto importante é que, de forma geral, os reservatórios são muito menores do que os encontrados no Sistema Cantareira. O maior deles, Ponte Nova, tem uma capacidade útil de 289,85 hm³ (pouco mais de 1/3 do o Jaguari-Jacareí, o maior reservatório do Cantareira, pode abrigar). Ele é seguido pelos muito menores Taiaçupeba (81,75 hm³), Jundiaí (74,1 hm³), Paraitinga (37,1 hm³) e Biritiba-Mirim (34,4 hm³). Na medida em que envolve a coordenação de vários reservatórios pequenos por meio de estratégias distintas (bombeamento e gravidade), de fato a gestão do Alto Tietê contém desafios particulares.
Do ponto de vista do controle social, então, seria fundamental contar com os dados desagregados para cada barragem, para que o cidadão tenha condição de entender a gravidade real do problema. Infelizmente, conforme comentado, esses dados não estão disponíveis na transparência ativa da SABESP. No entanto, o pouco conhecido Sistema de Alerta a Inundações (o SAISP – falei dele no último artigo, sobre o racionamento noturno que muito provavelmente ocorre no Cantareira) nos apresenta, em tempo real, os dados referentes às cotas (altura da água em metros) de cada reservatório. Além disso, o Volume 4 do Relatório do Plano da Bacia Hidrográfica do Alto Tietê (disponível neste link:http://www.fabhat.org.br/site/images/docs/volume_4_pat_dez09.pdf) nos indica alguns dos dados mais relevantes a respeito da capacidade de cada reservatório. Após fazermos a regressão da curva, conseguimos chegar à quantidade de água existente em cada um deles, a cada centímetro de queda ou elevação de nível.
E os dados nos mostram que a situação do Alto Tietê é ainda mais dramática do que parece, conforme a tabela abaixo (dados de 17/07, por volta das 15 horas):
Mais grave, no entanto, é a seguinte circunstância: a Estação Elevatória de Biritiba tem capacidade de transportar, no máximo, 9 m³/s de água – 60 % da vazão atualmente disponibilizada pelo Alto Tietê (um pouco menos, até, se pensarmos que 2,1 m³/s estão sendo enviados para poupar o Cantareira – imaginamos que Alckmin não está retirando água dos beneficiários do Alto Tietê, e sim aumentando provisoriamente a vazão de retirada, mas tudo é possível no mundo da gestão sem transparência). Ou seja: se os reservatórios após a Elevatória secarem, então o racionamento não só é absolutamente obrigatório – é uma imposição física.
É possível, então que, a partir do agravamento do cenário – notadamente nas três barragens supracitadas –, Alckmin foi forçado a rever o discurso, autorizando a realização de estudos para a extração do volume morto do Alto Tietê, a la Cantareira. Mais uma vez, emerge a polêmica de se retirar uma porção de água que, sabidamente, funciona para manter o sistema vivo, como uma capa protetora do ecossistema – e Alckmin, ao declarar que a “reserva existe para ser usada”, conforme esta matéria da Folha de 21 de Março (http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2014/03/1428326-reserva-e-para-se...), mostra que não apenas desconhece noções básicas de meio ambiente, mas também que pouco se importa para elas, dada a autorização dada para a exploração desse volume a meses do período eleitoral. E, mais do que isso, como marca do imenso despreparo gerencial desse governo – que permite que a crise hídrica chegue a esse ponto tão historicamente negativo –, esses estudos serão realizados pela primeira vez. E, pelo contexto dramático, ocorrerão no afogadilho, a toque de caixa, justamente quando estamos lidando com uma situação que afeta tão direta e literalmente a vida das pessoas.
Os dados nominais a respeito da quantidade de água existente abaixo dos volumes operacionais dos cinco reservatórios são os seguintes (também conforme o relatório supracitado):
É possível notar que esse volume morto hipotético é consideravelmente menor do que o existente para o Cantareira, tanto em termos absolutos como relativos. No sistema maior, a “reserva técnica” é de aproximadamente 510,89 hm³, algo como 34,23% da capacidade total do Cantareira. Já no Alto Tietê, esse volume, como vemos acima, é de 119,35 hm³ (18,75% da capacidade total desse sistema). O que nós percebemos, em um primeiro momento, é que a quantidade de água eventualmente disponível situada abaixo da cota mínima operacional nos reservatórios Paraitinga e Taiaçupeba é bastante irrelevante. Em sendo possível extraí-la (algo que, conforme comentado, ainda não sabemos), duraria possivelmente menos de 10 dias. Com relação aos demais reservatórios, também não são significativos, o que potencialmente demandaria a rápida transferência das bombas de um para outro, bem como a construção de três “puxadinhos” como os realizados para o Jaguari-Jacareí – que foi entregue, ao contrário do anunciado, bastante incompleto (com metade das bombas em operação), após dois meses de obras; e, até hoje, não sabemos se as edificações necessárias para a colocação das bombas foi concluído para o Atibainha.
É preciso observar, ainda, que mesmo no que se refere aos dados disponibilizados no relatório comentado acima (e que foram utilizados para as estimativas de cálculo deste artigo), não se sabe, ao certo, quais são as cotas mínimas quando o volume morto se aproxima de zero. Se no caso do Paraitinga e do Taiaçupeba essas informações realmente não são relevantes, com relação aos outros três reservatórios esses dados são essenciais para a determinação da efetiva capacidade de bombeamento. Isso porque se imagina que 1) não se bombeia até o “0”, sabendo-se que tal operação significaria revolver barro e toda sorte de detritos – inclusive, potencialmente, os metais pesados que aí se situam –, evidentemente pondo em risco real a população; 2) represas excessivamente profundas dificultam ou até inviabilizam a sucção das bombas – não é à toa que, no caso do Cantareira, a autorização da retirada para o Jaguari-Jacareí foi de 5,8 metros, e para o Atibainha, de 6,14 metros –; se as represas forem “funis”, então o risco de empoçamento é significativo (e simplesmente não sabemos o relevo desses solos – pelo menos publicamente). Relatórios mais antigos, como um apresentado em 2002, expressam grande divergência entre SABESP e DAEE até mesmo com relação à capacidade máxima de cada reservatório – ao contrário do Cantareira, que possui essas informações discriminadas em seus relatórios e documentos de outorga.
Nos últimos 30 dias, o Alto Tietê perdeu praticamente 1 bilhão de litros de água por dia. Em termos de perda por segundo, são 11,57 m³/s. Em outras palavras, de no mínimo 15 m³/s que são distribuídos à população – e digo “no mínimo” imaginando que não ocorra diminuição de pressão durante as madrugadas, conforme o eventualmente observado no Cantareira –, apenas 3,43 m³/s estão entrando em razão da vazão natural dos rios (mais chuvas). Alckmin, portanto, dispõe de um cenário cada vez mais crítico, considerando-se a tendência de redução ainda mais significativa da entrada de água para o mês de Agosto (assim como para o Cantareira, no Alto Tietê as mínimas históricas de vazões também ocorrem nesse mês, conforme o relatório supracitado). Esse cenário é ainda mais grave diante da relevância modesta do volume morto à disposição e, principalmente, em razão do já comentado limite físico de transporte de água da Estação Elevatória.
O que temos, em termos numéricos, é o seguinte: a partir dos níveis de perda observados para os últimos 30 dias, caso a SABESP mude sua estratégia e passe a buscar evitar o colapso dos três últimos reservatórios – para tentar manter o sistema todo unido, sem limitação de vazões e sem racionamento, portanto –, seria preciso, então, realizar o envio máximo de água por meio dos reservatórios Paraitinga e Ponte Nova até a Estação Elevatória, 9 m³/s (limite, por sinal, não só físico, mas também estabelecido na outorga do sistema no que se refere à retirada de água dessas represas), e tentar produzir uma perda de apenas cerca de 2,6 m³/s a partir dos três reservatórios subsequentes (resultando na perda total atual, de 11,57 m³/s). Nesse cenário, e: 1) admitindo, de forma otimista, que essas pequenas represas não teriam perdas de vazão conforme seriam esvaziadas; 2) que a vazão de entrada dessas três represas seja, agregadamente, de 1,5 m³/s; 3) que a vazão de entrada das outras duas represas seja de 1,9 m³/s (totalizando o ingresso médio atual do último mês, aproximadamente 3,4 m³/s); 4) que as vazões sejam destinadas para as represas que se aproximam do esvaziamento, de modo a preservar sua sobrevivência; 4) que a SABESP respeite a determinação da outorga de continuar a descarregar para os rios (já que eles alimentam outros sistemas produtores e outras cidades, que precisam dessa água) as vazões mínimas de 0,5 m³/s do Paraitinga, 0,3 m³/s da Ponte Nova, 0,1 m³/s do Jundiaí e 0,7 m³/s do Taiaçupeba, temos o seguinte (vejam quantas premissas, em geral bastante positivas diante do atual contexto):
· O diferencial entre a vazão de entrada nas três últimas represas e aquela que é obrigada a ser descarregada é de 0,4 m³/s nessa hipótese (secando ou não as represas);
· O volume útil da represa Taiaçupeba acaba em 70 dias. Com a pequena entrada diária acumulada no período, chega-se a mais 10 dias, em um total de 80 dias;
· A seguir, a represa Jundiaí seca em 31 dias. Com mais 4 dias de vazão com as entradas diárias, persiste por um total de 35 dias;
· Finalmente, a represa Biritiba tem seu volume operacional esvaziado em 30 dias. Novamente, com as entradas diárias acumuladas, chega a 34 dias.
· No total, então, a vazão de 2,6 m³/s, a partir de todos os pressupostos apontados, pode ser mantida nesse conjunto de 3 represas por um período de 149 dias;
· Já com relação às duas represas acima da Estação Elevatória, supõe-se que o diferencial entre as vazões de entrada e aquelas que precisam ser despejadas no rio por força da outorga é de 1,1 m³/s;
· Nesse sentido, o volume útil da Ponta Nova se esgota em 99 dias. Com as afluências diárias, a represa dura mais 41 dias. No total, o reservatório continua a ser capaz de fornecer 9 m³/s por 140 dias;
· A represa Paraitinga, por sua vez, sobrevive por 15 dias. A partir dos ingressos da vazão natural, seu esgotamento total ocorre em 21 dias;
· Com isso, a partir da hipótese construída, essas duas represas poderiam, na melhor das condições, manter seu funcionamento por mais 161 dias.
Em síntese, então, levando-se em conta que o prazo máximo em que o Sistema Cantareira poderá continuar a funcionar de forma integrada – abstraindo-se toda a questão das implicações hidrostáticas do esvaziamento das represas que operam por gravidade, a irregularidade das vazões e uma gestão eventualmente inadequada dos fluxos (hoje, como disse, parece que são os reservatórios que são incapazes de atender a toda a produção justamente aqueles que estão sendo preservados), Alckmin tem 149 dias para finalizar os estudos sobre a viabilidade da utilização do volume morto, para comprar bombas e para fazer obras em, provavelmente, três reservatórios. Vale ressaltar que, conforme os reservatórios esvaziam, também diminui sensivelmente a vazão natural dos rios. Não é apenas uma questão de chuvas, como se sabe, mas da dinamicidade do funcionamento dos mananciais. Então não será surpreendente caso venha a ocorrer a piora das já dramáticas condições do sistema, que poderão, conjuntamente com uma gestão arrogante da crise, levar ao colapso do Alto Tietê em um prazo ainda muito menor do que o apontado.
Vale dizer, reforçando o argumento, que uma gestão inadequada do Alto Tietê nesse momento será devastadora para a sua continuidade como sistema produtor. Se, em uma conta simples, percebemos que toda a água pode acabar em 118 dias a partir de uma gestão “laissez-faire” do sistema (e a hipótese acima dá a sobrevida de 1 mês mais ao conjunto de reservatórios, na consideração mais otimista sobre a situação), é possível notar que a preservação das duas represas “de cima” – que ocorre hoje – poderá fazer com que, em não mais de um mês, o sistema deixe de abastecer algo como 40% da sua capacidade, implicando inevitavelmente no racionamento. Isso pode ocorrer, por exemplo, se os pouco mais de 29 hm³ de Biritiba, Jundiaí e Taiaçupeba forem todos consumidos em detrimento da redução máxima da vazão de saída de Paraitinga e Ponte Nova. É essa a dimensão da iminência da tragédia.
Enfim, mais uma vez ressaltamos que a crise que ocorre hoje – em mais um sistema importantíssimo de produção de água – é uma crise hídrica, mas é também, e especialmente, uma crise de planejamento, de gestão, de transparência, e social de primeira ordem, por todo o conjunto de desrespeitos à vida que representa a falência da produção de água em um Estado tão rico em termos financeiros, em conhecimento técnico, em histórico, em outras áreas, de construção de políticas públicas transparentes e participativas e, por que não, até mesmo em disponibilidade hídrica potencial, dada a relevância em contexto mundial de aquíferos como o São Paulo e o Guarani. Tendo Alckmin, seu governo, seus órgãos e seu partido – há 20 anos no poder – jogado fora tamanhas oportunidades, resta agora torcer para que o cenário “São Paulo sem água”, cada vez mais próximo, tenha o menor impacto possível na cidadania – o que é improvável diante da centralidade da água para a vida.
Sérgio Roberto Guedes Reis
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