Gritos e resmungos
Nas últimas semanas, os debates suscitados pela controvérsia Huck-Ferrez desataram um desfile de fúria e descontrole moral.
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A generosa distribuição de adjetivos foi acompanhada de exaltadas conclamações para o retorno dos militares ou sugestões para que os correrias de Ferréz fossem mais eficientes em seu "empreendedorismo" anárquico e, não raro, mortal.
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Torço para que o destampatório seja mais um esgar do que um ideário consistente. Mas não custa ficar esperto: os estudiosos do totalitarismo sabem que a "autovitimização" da "boa sociedade" e a inculpação do "outro" foram métodos eficientes para a conquista do poder absoluto.
Vejo nos blogs: os mais furiosos se apresentam como "humanos direitos", em contraposição aos defensores dos "direitos humanos". Fico a imaginar como seria a vida dos humanos direitos na moderna sociedade capitalista de massas, crivada de conflitos e contradições, sem instituições que garantam os direitos civis, sociais e econômicos conquistados a duras penas. A possibilidade da realização desse pesadelo, um tropismo da anarquia de massas, tornaria o Gulag e o Holocausto um ensaio de amadores.
Hanna Arendt, em "Origens do Totalitarismo", abordou as transformações sociais e políticas na era do capitalismo tardio e da sociedade de massas. A economia dos monopólios promoveu a substituição empresa individual pela coletivização da propriedade privada e, ao mesmo tempo, a "individualização do trabalho" engendrada pelas novas modalidades tecnológicas e organizacionais da grande empresa. (...) A operação impessoal das forças econômicas produziu, em simultâneo, o declínio do homem público e a ascensão do "homem massa, cuja principal característica não é a brutalidade nem a rudeza, mas o seu isolamento e sua falta de relações sociais normais".
Trata-se da abolição do sentimento de pertinência a uma classe social sem a supressão das relações de dominação. (...)
Em seu último livro, "The Assault on Reason", misteriosamente não divulgado no Brasil, Al Gore, ganhador do Prêmio Nobel da Paz de 2007, diz que "Hanna Arendt escreveu sobre o totalitarismo no século XX e ressaltou a importância da esfera pública (onde se forma o consensus iuris): ' O único remédio contra o mau uso do poder público pelos indivíduos privados está na constituição de um espaço público capaz de avaliar os procedimentos de cada cidadão, submetendo todos os indivíduos à visibilidade'. Quando as opiniões são bloqueadas (pelo particularismo dos monopolistas da informação), a meritocracia das idéias sofre um grave dano e o debate democrático escapa às normas da razão e pode ser manipulado".
Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda e professor titular do Instituto de Economia da Unicamp
Valor 16/10/2007
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