quarta-feira, 10 de setembro de 2014

História recente da gestão do abastecimento de água em São Paulo

 por Sérgio Reis

20 anos de crise: história recente da gestão do abastecimento de água em São Paulo
Por Sérgio Reis
Uma das tarefas mais importantes que alguém interessado em compreender as razões da existência e a dimensão de um determinado fenômeno de seu tempo é a de olhar para o passado. Um olhar histórico que seja agudo e capaz de resgatar aquilo que hoje é apenas fragmento e vestígio e, ao mesmo tempo, de apontar origens daquilo que agora é somente um lugar comum inquestionável nos permite entender as escolhas que têm sido feitas e a sua caracterização a partir de juízos de valor. Sem essa conexão entre passado e presente, o que ocorre em 2014 se torna, em si mesmo, excepcionalidade, feito da natureza, imponderável. Lamentavelmente, nossa imprensa tem atuado com pouco esmero, no que se refere à questão da água, para realizar essa recuperação essencial. A partir da análise do acervo disponibilizado online pela Folha de São Paulo, tento efetuar esse exercício, que reputo como extremamente importante. Tomo emprestado a feliz expressão utilizada pelo grande internacionalista Edward Carr para explicar o período 1919-1939 como um modo metafórico para compreendermos a gestação da gestão da crise atual como algo que pode – e deve – ser historicamente entendido, e não assumido como um problema inimaginável e intangível.
Nesse sentido, cabe esclarecer que analisei um conjunto extenso de matérias que tratavam de temas hídricos desde 1994, buscando separar o que minha consciência de pesquisador interpretou como mais relevante. A coincidência histórica nos permite, por meio desse corte temporal, analisar tanto o fenômeno em si – a política pública de recursos hídricos para a região metropolitana de São Paulo – como a gestão efetuada por sobre ela – as duas décadas do PSDB à frente do Governo do Estado – e, ainda, o próprio comportamento de um importante jornal do ponto de vista de seu posicionamento e de sua cobertura.
1994, ano eleitoral, marcou a vitória de Mario Covas (PSDB) sobre Francisco Rossi (PDT) – que havia surpreendentemente vencido José Dirceu (PT) na busca por uma vaga no segundo turno. Barros Munhoz, o candidato do então governador Fleury Filho (PMDB), ficaria apenas em quarto lugar. E 1994 foi, também, um ano de crise hídrica. O cenário preocupante, no qual o Sistema Guarapiranga chegava a 30,5% de sua capacidade e o Alto Tietê, a 27,4%, foi gerido de forma um tanto similar ao que ocorre hoje: pouca transparência e confiança nas chuvas (e expectativa de sustentar os padrões de abastecimento até após o período eleitoral). Antes do segundo turno, no entanto, Fleury optou pelo racionamento – mais precisamente em 3 de Novembro. E, por fim, 1994 foi o ano em que a SABESP abriu seu capital, deixando de ser empresa pública para se tornar uma sociedade de economia mista.
Naquela época, o esquema adotado para lidar com a crise hídrica foi de, no caso do Guarapiranga, fornecer água por 2 dias e meio e cortá-la por um dia e meio. Com relação ao Alto Tietê, foi estabelecido o abastecimento por 3 dias, com corte de água por 1 dia. No total, 5,1 milhões de pessoas foram prejudicadas (3,5 milhões que recebiam água pelo Guarapiranga e 1,6 milhão pelo Alto Tietê) – 280 bairros da Zona Sul e Zona Leste, atingidos de forma alternada. Previa-se que o racionamento duraria até pelo menos Fevereiro de 1995, mas, curiosamente, ele foi encerrado em 31/12/1994 (último dia antes do começo da gestão Covas). Nesse momento, o Guarapiranga estava com 37,3% de sua capacidade e o Alto Tietê, 32,5%. Dizia-se que, caso os níveis caíssem para menos de 20%, o fornecimento deveria ser interrompido indefinidamente, já que a qualidade da água cairia ao ponto de se tornar imprópria. Em determinada reportagem, Marcio Riscala, assessor de imprensa da SABESP, chegou a dizer que quando o nível da represa chegasse a um estágio crítico, não adiantaria aumentar a quantidade de produtos químicos usados no tratamento da água – um discurso absolutamente diferente do enunciado pela SABESP para a crise atual. Para os hospitais, adotou-se o fornecimento de carros-pipa para manter o abastecimento constante; os grandes hotéis, por sua vez, lidaram com a crise por meio da construção de poços artesianos.
Pode-se dizer que a cobertura da Folha foi bastante crítica ao comportamento da SABESP naquele contexto. Diversas foram as matérias que denunciavam que a empresa descumpria a duração estabelecida para o racionamento, de forma que, em várias regiões, o tempo sem recebimento de água superava as 44 horas. Notícias ainda destacavam que o órgão costumava cobrar pela cobrança de ar, em vez da água, dada o fato de ocorrer a redução da pressão do seu fornecimento e os medidores serem inadequados a essa realidade. Éramos informados, à ocasião, de que a SABESP desperdiçava 11 pontos percentuais a mais em 1994 quando comparado ao último ano da gestão Quércia (1990). Em números, a perda equivalia a 36% da produção da água, ao passo em que era de 25% quatro anos antes. É importante guardarmos esse número, pois ele se encontra bastante próximo daquilo que a SABESP diz perder hoje em dia, 24 anos depois.
Em 1995, vimos de forma mais explícita o problema da incapacidade do Estado de acompanhar, do ponto de vista da produção, a demanda por água, em meio a um cenário marcado pelo sucateamento da máquina pública. Racionamentos pontuais eram declarados conforme os patamares de consumo superavam a capacidade de abastecimento em dias em que as vazões de entrada eram menores do que o esperado. Daí, inclusive, surgiu um dos primeiros termos do tucanês para o fenômeno: o “abastecimento administrado” como sinônimo desses cortes ad hoc de água. Covas, por sinal, trabalhou bem esse cenário adverso como estratégia de apresentação do “legado adverso” deixado por Fleury – como sabemos, várias empresas e bancos públicos foram privatizados a partir daí.
Para termos uma ideia, o déficit na produção de água era de 3 m³/s: 58 m³/s eram produzidos, mas a necessidade da região metropolitana de São Paulo era de 61 m³/s. O cobertor estava sempre curto para algo como 2,2 milhões de habitantes. Covas prometera para 1998 a universalização do abastecimento, o que só ocorreu a partir de 2001. O que víamos, nesse momento, era a existência de uma política de racionamento motivada por razões distintas das atuais: em Maio de 1997, por exemplo, uma matéria da Folha noticiava o risco de racionamento para os usuários do Cantareira e do Guarapiranga, apesar de os sistemas estarem com, respectivamente, 82,4% e 65,5% de suas capacidades. A questão era, conforme mencionado, a insuficiência da produção de água, e não a escassez dos reservatórios.
Daí, então, a atuação da SABESP nesse momento no sentido de desenvolver o Sistema Alto Tietê – o último grande investimento da companhia, por sinal (embora em funcionamento desde 1992 para abastecimento público a partir da abertura do reservatório Jundiaí – que se somou às represas Ponte Nova e Taiaçupeba – , apenas em 2005 é que Biritiba-Mirim e Paraitinga foram inauguradas, fazendo com que a produção chegasse a 15 m³/s – o problema é que esse volume só passou a ser entregue à população a partir de 2011, com a expansão da estação de tratamento Taiaçupeba, PPP que foi iniciada em 2006, deveria ter sido concluída em 2009 mas só foi inaugurada dois anos depois).
Em 1998, ano eleitoral, o tópico “racionamento” esteve ausente das matérias da Folha, apesar da continuidade dos problemas de abastecimento para pelo menos 730 mil pessoas, de acordo com reportagem do ano anterior – questão que, conforme mencionado, só seria equacionada em 2001.
Em 2000, outra crise hídrica, também bastante significativa. Já em Abril, no final do período chuvoso, o Alto Cotia, pequeno reservatório que atende aos municípios de Embu, Embu-Guaçu e Itapecerica da Serra, passou a ter cortes em sua distribuição de água, prejudicando 380 mil pessoas. Estava, à época, com 31,7% de sua capacidade (dizia-se que entraria em colapso com 14%). O Guarapiranga, por sua vez, contava com 55%. Embora o quadro não fosse tão dramático, Covas decidiu, em 25 de Maio, declarar racionamento, levando em conta as chuvas insuficientes que ocorreram em Março e em Abril. Aqui, cabe abrir um pequeno parênteses para antecipar uma análise que faremos mais à frente: diferentemente de Alckmin, Covas não temia cortar a distribuição de água. Vemos que a decisão foi tomada após apenas dois meses em que as precipitações ficaram abaixo da média (hoje, no caso do Cantareira, nos deparamos com uma realidade em que, nos últimos 9 meses, em 6 as chuvas estiveram abaixo desse parâmetro, e o atual governador rejeitou solenemente o racionamento). Vale destacar, ainda, que Covas havia prometido na campanha eleitoral de 1998 que não haveria mais o chamado “rodízio de água”, e teve de voltar atrás. Foi a primeira, desde 1994, a ocorrer em razão dos níveis baixos de armazenamento de água.
A questão absolutamente nevrálgica, aqui, é a de que 2000 foi um ano eleitoral. O então vice-governador, Geraldo Alckmin, foi candidato a prefeito de São Paulo – a primeira vez em que disputou um cargo majoritário. De acordo com várias matérias da Folha, o racionamento impactou severamente a campanha do tucano – algumas colunas indicavam que ele se incomodava com a manutenção do corte de água. O rodízio durou até Setembro – matérias em Agosto davam conta de que duraria até Dezembro (já que o Guarapiranga chegou a atingir 19,2% no dia 26), e a antecipação feita por Covas foi vista como eleitoreira (à época, ele deu declaração irônica sugerindo prosseguir com o racionamento para mostrar que não pretendia favorecer seu candidato). Curiosamente, o então governador já utilizava um discurso que hoje é a “moda da casa”: São Paulo teria enfrentado a pior estiagem em 100 anos. O problema é que muito possivelmente a crise teria sido contornada se uma obra de expansão da capacidade do Guarapiranga tivesse sido concluída tempestivamente – a reversão de águas para captação em um braço do Rio Taquacetuba (afluente dessa represa), concluída com 9 meses de atraso.
Em síntese, o racionamento de quase 4 meses atingiu cerca de 3 milhões de moradores em 400 bairros, que ficavam dois dias com água e um dia sem. Pela primeira vez foi possível registrar no jornal o anúncio de campanhas de redução de consumo e contra o desperdício. No entanto, especialistas entrevistados pela Folha criticaram asperamente a gestão Covas pela falta de planos voltados aos maiores consumidores – grandes empresas, shoppings, hotéis e hospitais. Eleitoralmente, Alckmin sofreu uma grande derrota: ficou em terceiro, com cerca de 17% dos votos, e viu o desgastado Maluf (PPB) perder para Marta Suplicy (PT) no segundo turno.
Alckmin assumiu o governo em Março de 2001, a partir da morte de Covas. Como veremos de agora em diante, nunca mais houve uma declaração de racionamento nos 3 maiores sistemas de produção de água na região metropolitana de São Paulo (Cantareira, Guarapiranga e Alto Tietê, responsáveis por pelo menos 85% do atendimento à demanda desse território), mesmo quando a situação foi considerada pelos mais diversos especialistas como mais crítica ou dramática do que a observada em 2000. Com efeito, logo após se tornar Governador, Alckmin já teve de lidar com notícias que apresentavam o cenário de um possível racionamento. Ainda em Março, a Folha noticiava que o Cantareira estava com 38,4% de sua capacidade, o Guarapiranga, com 52,1%, e o Alto Cotia, 28,6% - todos em situação pior do que a observada um ano antes, quando Covas estava prestes a declarar o corte na distribuição de água para os usuários dos dois últimos sistemas.
O próprio Alckmin, por sinal, chegara a admitir a inevitabilidade do racionamento por considerar que os “níveis das represas estavam muito baixos”. Naquele momento, o Cantareira atingia seus menores níveis absolutos desde 1987: 38%. Como pequeno parênteses, vale apontar que esses 38% equivaleriam, nas métricas de hoje, cerca de 58%, dada a redução da cota referente ao “0%” operacional a partir da outorga de 2004. Agora, estamos com algo como “-10%” do volume. E Alckmin não quer fazer racionamento.
O falecido professor Aldo Rebouças (do Instituto de Estudos Avançados da USP), um dos críticos mais vocais da gestão da água nesse contexto, entendia que a SABESP se utilizava de uma “estratégia da escassez” em vez de endereçar definitivamente o problema do gerenciamento dos mananciais. Em outras palavras, faltava à companhia investir em ações voltadas à prevenção da seca e aquelas, de cunho não-estrutural, para combater o desperdício. Críticas de 11 anos atrás, que permanecem absolutamente atuais.
É preciso rememorar um pequeno grande escândalo noticiado pela Folha em 29 de Março desse ano: a descoberta de um relatório interno da SABESP que recomendava maquiar os dados do Sistema Cantareira. Isso significava, na verdade, fazer com que a alta gerência da empresa focasse seus discursos apenas no Alto Cotia, já que o universo de prejudicados era bem menor (380 mil versus 9 milhões de cidadãos). O órgão, com uma postura bem menos arrogante do que a que manifesta hoje (questão que já abordei em vários outros artigos), fez um mea culpa, comentando sobre a inevitabilidade do racionamento para ambos os sistemas. Enquanto isso, o então Secretário Mendes Thame comentava, com incomensurável sobriedade para os padrões de hoje, que realmente havia um risco de colapso de abastecimento.
No dia seguinte, a Folha noticiava que a SABESP perdia 1/3 do que produzia, sendo 15,5 pontos percentuais em vazamentos. Em outras palavras, uma diferença bem pouco relevante diante do observado sete anos antes, conforme o início deste artigo: 33% versus 36%, sendo que em 1990 teria chegado a 25%. Em Abril, de fato, Alckmin autorizaria o início do racionamento para o Alto Cotia. Em Maio, o jornal publicava que a publicidade pela redução do consumo seria a única medida a ser adotada pela empresa pública para evitar um possível racionamento, não existindo previsão de obras emergenciais para aumentar a produção de água. Em Julho, o Cantareira chegaria a 30%, enquanto o Guarapiranga baixava até os 45% e o Alto Cotia descia aos 26%.
Como medida paliativa, Alckmin passaria a usar a controversa técnica de bombardeio de nuvens na região dos dois últimos reservatórios. A Folha criticaria a medida, dizendo que a estratégia teria sido utilizada antes apenas em 1986, com poucos resultados. Além disso, comentava que, de acordo com a SABESP, não seria tentada no Cantareira, em razão da inadequação de seu clima para tanto. Não sabemos se, 13 anos depois, ou a tecnologia evoluíra consideravelmente, ou o microclima daquela região teria mudado o bastante para viabilizar o seu emprego, mas sabemos que desde Fevereiro uma empresa foi contratada para executar esse serviço naquelas localidades. Leríamos pela primeira vez que o limite mínimo de funcionamento “normal” do Cantareira estaria nos 6%, de acordo com o próprio Presidente da SABESP à época, Ariovaldo Carmignani. De acordo com ele, o sistema já teria operado com 10% da capacidade, mas no “fio do bigode”. À época, a Folha enfatizava o quanto a sanção de um racionamento por parte de Alckmin teria um alto custo político para sua gestão. De fato, apesar de ter chegado a 18,9% de sua capacidade no começo de Setembro, o racionamento não foi decretado. No caso do Alto Cotia, por outro lado, ele foi mantido até Janeiro de 2002, mesmo quando estava com mais de 46% de sua capacidade – um indício claro do tratamento diferenciado a cidadãos a depender do sistema de abastecimento ao qual estão vinculados e de sua centralidade política do ponto de vista numérico e econômico (e, por conseguinte, eleitoral).
Em 2002, outro ano eleitoral, novamente a questão do racionamento perde relevância nos debates jornalísticos, ainda que a situação dos reservatórios não fosse exatamente próspera. Para se ter uma ideia, o Guarapiranga chegou a 26% de sua capacidade em Outubro (entre o primeiro e o segundo turno, vencido por Alckmin contra José Genoino (PT)). Uma das questões relevantes abordadas nesse ano, no entanto, foi o desgaste dos mananciais em razão das ocupações irregulares e da ausência de políticas sustentáveis de manejo e fiscalização. Nessa época, legislações polêmicas, como uma, de autoria de Ricardo Trípoli, que regulamentava a edificação de novas obras nesses terrenos ao mesmo tempo em que propunha um política de recuperação das áreas, foi aprovada. Alckmin vetou partes do texto, mas concedeu uma espécie de anistia à ocupação irregular das regiões do entorno do Cantareira, do Alto Tietê, da Billings e do Guarapiranga – cerca de 1,6 milhão de pessoas habitavam esses locais. Outras matérias noticiavam a respeito da perda de capacidade de produção em reservatórios como o Guarapiranga a partir da ocupação desordenada dos terrenos – um relatório apontava para a circunstância de 70% desse manancial estar em situação precária e para o fato de haver apenas um técnico do governo responsável por toda a fiscalização da área. Há de se comentar, ainda, que foi nesse ano em que a SABESP começou a buscar o malfadado protagonismo empresarial internacional a partir da abertura das suas ações na bolsas de valores de Nova Iorque – o que era visto como um símbolo de modernidade e profissionalismo, e que hoje mais nos parece um case sobre como é possível privatizar uma empresa pública sem a necessidade de vendê-la.
A partir de Julho de 2003, a Folha passa a noticiar o início daquela que seria, até 2014, a maior crise hídrica já enfrentada pelo Sistema Cantareira. A grande promessa da SABESP, à época, era a expansão do Sistema Alto Tietê, capaz de reduzir a dependência da região metropolitana de São Paulo com relação ao conjunto de reservatórios situado na região de Bragança Paulista, Joanópolis e Nazaré Paulista. No entanto, os reservatórios de Paraitinga e Biritiba-Mirim, que deveriam ter ficado prontos ainda em 2002, tiveram uma série de problemas de licenciamento ambiental, tendo sofrido oposição de diversos grupos de defesa do meio-ambiente em virtude dos expressivos desmatamentos causados – apenas em 2005 é que seriam, de fato, integrados ao Sistema Produtor. Assim como em 2000-1, o governo buscou se defender sob o argumento de que São Paulo enfrentava a maior estiagem de sua história. Se, no primeiro caso, dizia-se que o Estado enfrentava a maior escassez de chuvas (ou de vazão de entrada, a depender da ocasião) em 46 anos, no segundo o dado era atualizado para 49 anos (ambos em referência ao histórico período de 1953-54). O que ficou claro, evidentemente, é que nem a crise de 2000-1 serviu como aprendizado para 2003-4, nem esta ensinou o governo (Alckmin, o mesmo mandatário em todos os casos) a lidar com 2013-4.
Quando a crise foi anunciada pela imprensa, o Cantareira se encontrava com 35,1% de sua capacidade. Em pouco mais de um mês, cairia para 26,8%. Enquanto isso, o Alto Cotia estava com apenas 26,1% de sua capacidade – em 2001, o racionamento foi decretado quando esse sistema se situava com 28%). No Guarapiranga, as condições não eram melhores: seu reservatório, no mesmo momento, apresentava apenas 33,6% de sua capacidade. Um dos factoides apresentados pela SABESP, à ocasião, era o desenvolvimento de técnicas de flotação da água do Rio Pinheiros – o que resultaria em sua despoluição e, no limiar, o seu aproveitamento para consumo. Argumentava-se, à época, que poderia vir a ser um caminho para fazer com que a Billings pudesse vir a contribuir para o abastecimento da região metropolitana de São Paulo. No entanto, a medida enfrentou forte objeção de ambientalistas, técnicos e do próprio Ministério Público.
No final de Agosto, a própria SABESP já começava a cogitar o racionamento da água de alguns sistemas produtores. Vinha à público o diagnóstico de que as chuvas teriam sido inferiores às médias históricas desde 2000, sem que o governo tivesse adotado qualquer mudança de postura na distribuição da água. Em fins de Setembro, matéria da Folha comentava, com base em especialistas e na própria SABESP, que a não realização do racionamento dependia de um contexto no qual cada sistema deveria ter pelo menos 40% da sua capacidade operacional ao final da estação seca. No começo do mês seguinte, a SABESP já admitia que não conseguia oferecer água com regularidade para pelo menos 400 mil habitantes da Grande São Paulo que viviam em regiões mais altas – o que significava, na prática, que já adotava a redução de pressão no abastecimento como uma estratégia velada de redução na produção de água.
Em meados de Outubro, o Cantareira estava com apenas 10,2% de sua capacidade. Dizia-se, à época, que seu limite operacional estava em 5% - abaixo disso, o racionamento seria inevitável, já que a lógica de transporte de água por gravidade não mais funcionaria plenamente. Além disso, ao se aproximarem desse “0” operacional, os reservatórios teriam uma dificuldade muito mais substantiva para se recuperarem – pelo menos dois anos. Em entrevista para a Folha, o então Gerente de Controle do Abastecimento da SABESP, Amauri Pollachi, dizia que “poderíamos captar por 40, 45 dias mais, porque temos uma espécie de reserva de tanque de gasolina, mas é claro que não queremos usar essa reserva. Isso seria uma loucura”. Por certo, Pollachi se referia ao volume morto, tópico que apareceu timidamente nas discussões da época. É preciso esclarecer que o “0” da represa Jaguari-Jacareí, nesse momento, equivalia à cota de 829 metros. A outorga de 2004, assinada logo depois dessa imensa crise, permitiu à SABESP diminuir essa altura mínima para 820,8 metros. Apenas para termos uma dimensão do problema atual, de 2014, hoje esse reservatório, o coração do sistema, está na cota 816,8 metros. Depois da renovação da outorga, por sinal, a SABESP contratou novos estudos, muito mais profundos, para analisar o comportamento dos reservatórios em situações mais críticas – pesquisas essas que não foram feitas, p.ex., para o Alto Tietê, e que tornam o seu comportamento uma incógnita a partir do momento em que o sistema, hoje, diminui para níveis bastante inferiores aos menores níveis já registrados (o que redunda, nos reservatórios que transportam água por gravidade, em problemas hidrostáticos).
Ainda nesse mês, a Folha noticiava que o Alto Cotia reduzia seu volume a 10,1% de sua capacidade, ao passo em que o Alto Tietê descia para 22,4%, uma das menores marcas já aferidas para esse sistema. Outra reportagem nos contava que mantinha-se um desperdício de água logo após a sua produção (e antes de chegar até os cidadãos) de cerca de um terço do total, números similares aos observados na década anterior. Pela primeira vez, a SABESP opta pela controversa técnica de bombardeamento de nuvens, medida sem resultados significativos.
Finalmente, com a piora dos níveis do Alto Cotia, a SABESP anuncia a realização de racionamento para os usuários desse sistema. E apenas nesse momento é que também comunicam ao público o início da realização de uma campanha pela economia. No entanto, chuvas moderadas na região fizeram com que, na véspera do início do rodízio a empresa optasse pelo cancelamento temporário dessa estratégia. A mudança súbita da postura do Secretário Mauro Arce (o mesmo de agora, por sinal) ensejou críticas contundentes por parte de especialistas, que apontaram para carências no processo de planejamento por parte da SABESP. Mais ainda, manifestaram preocupação com o Cantareira, considerando que, em níveis muito baixos, seria cada vez mais difícil realizar o seu bombeamento, e também seriam maiores os riscos de que a água chegasse mais suja para a população. Porta-vozes da própria empresa diriam à Folha que a eventual retirada de água situada abaixo do nível equivalente a 5% da capacidade operacional significaria “condenar a população ao racionamento durante a estação seca no ano que vem”. Interessante observar a impressionante mudança de discurso da companhia nesse intervalo de dez anos.
A partir de então, observaríamos o que classificaria como um comportamento patético por parte dos agentes estratégicos do governo de São Paulo, que aguardariam diariamente por chuvas para decidir se ocorreria ou não racionamento de água no dia seguinte. De fato, no caso do Alto Cotia, o primeiro anúncio de rodízio que foi efetivamente implementado ocorreu apenas na véspera de sua realização. Em tese, o esquema seria baseado no abastecimento da população por 36 horas, seguido de um período similar sem água. No entanto, a população que era atendida por esse sistema ficou 79 horas sem água. Diante da fragilidade da capacidade técnica da SABESP em realizar o racionamento, optou-se pela redução da vazão do Alto Cotia em 50%, além da ajuda do Cantareira e do Guarapiranga (que estavam, também, em situação crítica). Em Novembro, por sinal, ficaríamos sabendo que, desde Junho, o maior sistema produtor de São Paulo já vinha sendo ajudado pelo Guarapiranga, pelo Rio Grande e pelo Alto Tietê, o que também contribuiu para o esvaziamento desses outros sistemas ao longo desses meses.
Em Novembro, com o Cantareira com apenas 3,7% de sua capacidade operacional (e com a represa Jaguari-Jacarei considerada vazia, com captação de água “impossível”), a SABESP define um plano de racionamento, dividindo os cidadãos atingidos em três blocos de três milhões, que ficariam sem água entre 24 e 36 horas. Por sinal, um esquema bastante similar a esse foi o desenvolvido pela empresa em Janeiro deste ano, quando a crise atual se tornou pública – Alckmin vetou a medida, e esse esboço só chegou ao conhecimento da população em Agosto, naquilo que foi um dos mais curiosos casos de falta de transparência do governo tucano na gestão do problema vigente. Além disso, a companhia previu a redução da captação de água de 33 para 22 m³/s (o que, na crise atual, começou a ocorrer em Março, possivelmente devido à atuação do Comitê Anticrise, órgão que contém outros atores, como a ANA, e que não foi formado para lidar com a crise de 2003-4).
Diante da manutenção dos índices de capacidade ao longo do mês, a SABESP comentou que descartaria o racionamento do Cantareira até Março do ano seguinte – o sistema estava, então, com 2,8%. O anúncio, na contramão das expectativas de especialistas, do próprio jornal e da população, veio acompanhado, nos dias seguintes, pela menção, pela primeira vez, do termo “volume morto”, porção de 200 milhões de metros cúbicos de água suficientes para manter o abastecimento por mais 60 dias, de acordo com um estudo preliminar de 3 anos antes feito pela USP. Essa pesquisa dizia que o “0” operacional de então expressava o limite do uso da vazão de 33 m³/s, e que abaixo dele, até certo ponto, era possível manter uma vazão de 22 m³/s. Por isso, então, a empresa cancelou o racionamento naquela época, confiando na possibilidade de utilização desse volume morto – que, depois, conforme comentado, passou a ser tratado, na nova outorga, como parte do volume útil – até Março de 2004. Foi exatamente o que ocorreu. No Alto Cotia, por sua vez, o racionamento foi interrompido no final de Dezembro, a partir da recuperação de mais de 10 pontos percentuais de sua capacidade.
Embora a crise de então estivesse sendo superada, especialistas – como Pedro Jacobi e Marussia Whately – prenunciavam a existência de um processo de aprofundamento dos problemas, considerando-se que grandes sistemas, como o próprio Cantareira, não estavam mais conseguindo encher durante o período chuvoso, o que faria com que as crises pudessem vir a se tornar cada vez mais frequentes e graves. No começo de 2004, a Folha apresentou reportagem que explicava o próximo Plano Direito de Águas da SABESP. Nele, um conjunto de alternativas para a expansão da capacidade de produção de água eram apresentadas: as consideradas mais viáveis eram o represamento do rio Capivari-Monos, no extremo sul da capital, e a captação do rio Juquiá, na Grande São Paulo. As menos interessantes eram justamente aquelas que o Governo do Estado acabou por escolher (ou por, retoricamente, promover): a reversão do rio São Lourenço e a transposição do Paraibuna.
Analistas da questão hídrica já em 2004, no entanto, apontavam que era preciso que a SABESP investisse mais em medidas não-estruturais – para além da expansão da produção via construção de grandes reservatórios, localizados cada vez mais distantes de São Paulo. Medidas como a troca de equipamentos hidráulicos por outros, que consumissem menos; a cobrança pelo uso da água, o seu reuso, o controle da urbanização e da ocupação dos mananciais em nível metropolitano, associada a políticas de habitação popular e de compensação financeira a cidades que preservassem suas regiões de produção de água eram propostas indicadas como essenciais para se evitar a ocorrência de uma crise como aquela que acabara de ocorrer. Mais importante, tratava-se de promover a mudança cultural geral a respeito do uso da água. Ivanildo Hespanhol, professor da Escola Politécnica da USP e, à época, presidente do Centro Internacional de Referência em Reuso de Água, observava a inexistência de campanhas do poder público nesse sentido.
Apesar das chuvas acima da média, os níveis do Cantareira continuavam inseguros para a estação seca quando observados em Fevereiro. O Governo insistia em descartar o racionamento até pelo menos o final de Março, mas novos planos de rodízio começavam a ser planejados para implementação entre Abril e Junho. A SABESP lançaria, pela primeira vez, o esquema do bônus de 20% de desconto para o caso de redução do consumo em 20% (em 2014, o desconto na conta de água é de 30% para uma redução do consumo idêntica à proposta em 2004). Em seguida, a companhia ainda lançaria, de forma tardia, uma operação “caça-vazamentos”, destinada a reduzir os níveis de perda de água ainda antes do consumo. Até então, a empresa comunicava que era preciso que se chegasse a Abril com pelo menos 30% da capacidade operacional – idealmente, 40% - para que o racionamento não fosse declarado para o Cantareira. No entanto, no começo do mês, o sistema se encontrava com apenas 18,1%. Por diversas vezes, conforme os níveis do sistema não alcançavam as expectativas anunciadas pela SABESP, os agentes políticos do governo apresentavam contínuos recálculos (para baixo) dos percentuais de água mínimos necessários para que o racionamento fosse evitado.
Com efeito, dizia-se no começo de Abril que era preciso que, no final do mês, o sistema chegasse a 25% da capacidade. Em meados de Junho, no entanto, o Cantareira estava com 21,4%, e ainda assim o racionamento foi descartado. Como agora, 2004 também era um ano eleitoral. Por sinal, um estudo desenvolvido pelo Instituto Socioambiental apresentou o achado de que, tivesse a produção do Cantareira sido diminuída em 10% desde 2001 (quando surgiram os primeiros levantamentos que indicavam a queda na média de chuvas para a região), o sistema teria chegado, no final de 2003, com 34% de sua capacidade (e não com 6%, como ocorreu). Tratar-se-ia de uma situação, evidentemente, muito menos grave do ponto de vista do risco ao desabastecimento.
É preciso dizer que estudos como esse foram ignorados por atores relevantes na política de recursos hídricos, inclusive em nível federal – notadamente a Agência Nacional de Águas, a ANA. Aliás, a própria crise, em si, foi escanteada. Na assinatura da renovação da outorga, em Agosto de 2004, a SABESP foi autorizada a retirar ainda mais água do que já fazia – 36 m³/s em vez de 33 m³/s – e ainda pôde considerar como operacionais 8,2 metros da represa Jaguari-Jacareí que eram tratados, até então, como volume morto. Com essas duas medidas, as quais contaram com a conivência da ANA, os níveis do Cantareira subiram, “artificialmente”, praticamente 20 pontos percentuais, o que mascarou a crise que estava sendo superada. Além disso, a ampliação das vazões máximas de saída deu uma certa ilusão de “normalidade” no comportamento climático e hidrológico previsto, o que deve ter contribuído, em parte, para a postura arrogante da SABESP, em nosso contexto atual, na gestão da crise hídrica – sem reconhecer a existência de macro e micro eventos importantes para a determinação da crise, como o excesso da retirada de água combinada com a perda de produção dos reservatórios em razão do assoreamento dos mananciais e das transformações do clima. Aí estão alguns dos elementos que explicam as aporias do nosso tempo, dez anos depois.
De fato, “São Pedro” foi bastante generoso com São Paulo em alguns dos últimos anos, o que contribuiu para a aparência de superação da crise hídrica vivenciada em vários momentos no período 1994-2004. Nos verões de 2005-2006 e 2009-2010 tivemos, de acordo com a própria Folha, chuvas fortes e excepcionais, as quais fizeram com que os níveis das represas de todos os sistemas da região metropolitana subissem consideravelmente – no segundo período, por sinal, alguns dos reservatórios tiveram de verter água, já que ultrapassaram 100% de sua capacidade. Do ponto de vista da crise mais aguda de abastecimento, os noticiários foram bem mais escassos no período 2005-2013. Apenas em Setembro de 2007, quando o Cantareira se encontrava com 39,2% de sua capacidade e o Guarapiranga, com 47,4%, é que houve alguma repercussão na Folha de São Paulo. O Cantareira se aproximaria dos 30% em Outubro, mas a SABESP descartaria, de pronto, o racionamento – e logo retiraria da cartola uma estatística que justificasse o problema: aquele mês foi o período menos chuvoso em 7 anos.
No entanto, outras matérias que não apenas as crises de abastecimento nos explicam um pouco mais sobre a crise atual. Em 2004, uma reportagem da Folha nos mostrava que a SABESP, logo após enfrentar a maior crise hídrica até então, pretendia investir menos ao longo do próximo decênio do que o que teria invertido ao longo dos 9 anos anteriores (1995-2004). E isso em meio ao imenso crescimento empresarial da companhia, alicerçado em lucros expressivos e em captações multimilionárias nas Bolsas de Valores. De fato, do ponto de vista da expansão da capacidade de produção de água para a região metropolitana, o último avanço foi justamente o lançamento das represas de Biritiba-Mirim e Paraitinga em 2005. O aumento global da capacidade de abastecimento por parte do Alto Tietê ficou limitado, apesar da formação desses reservatórios, até pelo menos 2011, já que, como vimos antes, a Estação de Tratamento Taiaçupeba só conseguia entregar 10 m³/s de água potável, e o sistema produtor, com as inaugurações ocorridas seis anos antes, passara a conseguir produzir 15 m³/s.
É possível dizer, então, que já há 9 anos não ocorre um incremento propriamente dito da capacidade de produção de água para a região metropolitana de São Paulo – e isso em meio à evolução contínua da demanda desde então. O Sistema São Lourenço, por sinal, deveria ter seu projeto iniciado em 2006, e sua conclusão, em 2012, mas os estudos para a PPP só foram empreendidos em 2012, com previsão de término das obras para 2018 – 6 anos de atraso no planejamento e na implementação. Ao mesmo tempo, as ações microestruturais praticamente não avançaram: as campanhas de conscientização sobre a redução do consumo de água só ocorreram em tempos de crise extrema (como agora, sendo que foram substantivamente reduzidas em período eleitoral, para não incomodar o cidadão-consumidor-eleitor), e todas as demais estratégias apontadas há mais de uma década por especialistas – reuso, preservação de mananciais, redução de vazamentos, cobrança pelo uso, multa por desperdício – não foram implementadas ou foram adotadas de maneira bastante cosmética e circunstancial.
O racionamento em si, hoje tão rejeitado pela SABESP supostamente em virtude dos problemas que traria para os encanamentos – e adotado normalmente, como vimos, até o momento em que Alckmin assume o governo, pouco depois de ser derrotado para a prefeitura em um contexto de desgaste político para sua candidatura em meio à adoção de rodízio por parte do então Governador Mario Covas –, deixa de ocorrer em boa medida também porque essas tubulações são antigas e sofreram um parco processo de renovação: de acordo com dados da Folha e do Estadão, em 1997 tínhamos 70% das adutoras com menos de 25 anos de idade (ou seja, implementadas após 1972); em 2014, 17% da rede têm mais de 40 anos, e 34% tem entre 30 e 40 anos. Em outras palavras, em um intervalo de 17 anos, passamos de uma situação em que 30% dos grandes encanamentos tinham mais de 25 anos para pelo menos 51% com mais de 30 anos – uma piora expressiva. É possível, então, que o racionamento tenha se tornado uma solução inadequada, mas a responsabilidade é da própria SABESP, pouco eficaz na renovação dos encanamentos.
E as perdas, como vimos ao longo do texto, permaneceram extremamente elevadas. Outra notícia do Estadão aponta para desperdícios, em 2014, da ordem de 31,2%, sendo 66% deles oriundos de vazamentos. Vinte anos antes, as perdas eram de 36%. Uma melhora quase negligenciável. Da mesma forma, pouca atenção foi dada à perda da capacidade de produção de água em virtude do desgaste dos mananciais. Em 2000, matéria da Folha apontava para a perda de 5% da capacidade de produção do Guarapiranga em razão da destruição de seus mananciais – e isso enquanto apenas um técnico era responsável pela fiscalização de toda a represa. Em 2009, o mesmo jornal nos mostrava que a produção global de água por parte de todos os sistemas que atendem a região metropolitana tinha caído cerca de 5,1 m³/s em apenas 5 anos, o que fazia com que São Paulo vivesse uma situação de estresse hídrico considerável.
Mais dramático, como vimos, é a gestão em si das crises de abastecimento, em especial a partir da Era Alckmin. Marussia Whately, em entrevista para a Folha, dizia ainda em 2004 que o gerenciamento dos recursos hídricos tinha virado uma questão de fé, o que seria especialmente trágico levando-se em conta o contexto eleitoral. Comentava a especialista que “o governo argumenta que a decisão de não fazer ainda o racionamento é técnica, e não política, mas, há algum tempo, a única coisa que os técnicos fazem é olhar para o céu em busca de chuva e contar os dias. E estamos num ano eleitoral”. Seu raciocínio permanece absolutamente atual, uma década depois, o que nos diz muito a respeito da capacidade de aprendizado nula da gestão tucana a respeito de como lidar com as adversidades e como adotar posturas republicanas, mesmo quando vige a tentação da vitória – e do estelionato – eleitoral.
Esse longo percurso que fizemos ao longo desses últimos vinte anos da história de São Paulo da perspectiva da questão hídrica – mais propriamente do objeto “crise de abastecimento” – nos é útil, a meu ver, para entendermos como certas práticas e discursos que observamos em nosso tempo possuem, ao mesmo tempo, uma inevitável conexão e uma expressiva singularidade perante o passado – seja na coerência ou na incoerência entre o que é vivido e enunciado a cada momento. Cada mudança de discurso ou cada reiteração de uma prática constitui um importante ensinamento que a História nos traz. Mais ainda, um aprendizado – de consciência, e profundamente político. A crise da água em São Paulo não é o resultado, enfim, de uma mera combinação de adversidades climatológicas, ou de um arranjo não produtivo de intempéries exógenas à intervenção humana. É um fenômeno historicamente muito bem definido e politicamente articulado a partir de práticas de gestão que negaram, sob as mais variadas formas, um olhar essencialmente humano e hermenêutico para o que são os recursos hídricos e o que eles representam para a cidadania. Pelo contrário, o rol de atuações vazias, improvisadas, que negaram a razão de ser da Administração Pública – a capacidade humana de planejar, de lidar com imprevistos, de fazer com que a natureza trabalhe a favor de si mesma e da coletividade – nos esclareceram mais a respeito da inviabilidade de se enxergar a água como uma commodity. Vícios privados não se convertem em benefícios públicos, muito menos quando praticados no interior de um Estado que se pretende republicano.
*Dedicado a Nicolau Sevcenko

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