Lloyd Blankfein, Financial Times, reproduzido no Valor Econômico em 20/02/2009
Desde a primavera e, mais pronunciadamente neste outono, uma epidemia global de medo e pânico asfixiou as artérias das finanças, exacerbando uma deterioração mais abrangente na economia global. A maior parte do ano passado foi extremamente humilhante para o nosso setor. As pessoas estão compreensivelmente revoltadas e nosso setor precisa prestar contas por seu papel naquilo que transpirou.
Daniel Acker / Bloomberg News
Blankfein, executivo-chefe do Goldman Sachs: "Remover o risco completamente do sistema virá ao custo do crescimento"
As instituições financeiras têm uma obrigação em relação ao sistema financeiro mais amplo. Nós dependemos de um sistema sadio, que funciona bem, mas fracassamos em suscitar perguntas suficientes sobre se parte das tendências e práticas que se tornaram habituais realmente atenderam os interesses de longo prazo do público.
À medida que formuladores de política e reguladores começarem a considerar as ações a serem tomadas para lidar com as deficiências, parece-me que será útil refletir sobre algumas lições aprendidas com essa crise.
A primeira é que a gestão de risco não deve se basear inteiramente em dados históricos. Nos meses passados, temos escutado a frase "eventos com múltiplos desvios-padrão" mais do que algumas vezes. Se os eventos que foram calculados para ocorrer uma vez a cada 20 anos na verdade ocorreram com muito maior regularidade, não é preciso ser nenhum matemático para concluir que as premissas de gestão de risco não refletiram a distribuição dos resultados reais. Nosso ramo precisa se empenhar mais em realçar e aprimorar análises de cenários e testes de resistência em condições de pressão.
Em segundo lugar, um número grande demais de instituições financeiras e investidores terceirizou a sua gestão de risco. Em vez de se incumbirem das suas próprias análises, elas confiaram nas agências de classificação para executar o trabalho essencial de análise de risco para si. Isto foi verdade na implantação e durante o período do investimento, ao longo do qual elas não prestaram atenção em outros indicadores de deterioração financeira.
Esta dependência exagerada nas classificações de crédito coincidiu com o enfraquecimento da cobiçada classificação triplo A. Em janeiro de 2008, existiam 12 empresas com nota triplo A. Ao mesmo tempo, havia 64 mil instrumentos financeiros estruturados, como carteiras de títulos lastreados em crédito (CDO, na sigla em inglês), com classificação triplo A. É fácil e conveniente responsabilizar as agências de classificação por lapsos nas suas avaliações de crédito. Cada uma das instituições financeiras que participaram no processo deve aceitar a sua parcela de responsabilidade.
A terceira é que tamanho é documento. Por exemplo, se uma pessoa detém US$ 50 bilhões de dívida super sênior de (supostamente) baixo risco num CDO, a probabilidade de perdas era, proporcionalmente, a mesma. Mas as consequências de um erro de cálculo eram obviamente muito maiores se a pessoa tivesse uma exposição de US$ 50 bilhões.
A quarta é que muitos modelos de risco presumiram que as posições podiam ser plenamente protegidas. Após o colapso do Long-Term Capital Management e a crise nos mercados emergentes em 1998, novos produtos como as várias cestas de índices e swaps de crédito foram criados para ajudar a compensar uma série de riscos. Entretanto, nós, como um setor, não consideramos de forma suficientemente cuidadosa a possibilidade de que a liquidez poderia evaporar, dificultando a aplicação de proteções de risco eficazes.
A quinta é que os modelos de risco não conseguiram capturar o risco inerente em atividades não contabilizadas nos balanços patrimoniais, como os veículos de instrumentos estruturados. Agora já está claro que dirigentes de empresas com vasta exposição não registrada em balanço patrimonial não estimaram a plena magnitude dos riscos econômicos aos quais estavam expostos: igualmente preocupante, seus pares não estavam conscientes da plena consequência desses veículos e, portanto, não podiam avaliar criteriosamente o risco de se fazer negócios.
Sexta, a complexidade levou o que tínhamos de melhor. O setor deixou o crescimento nos novos instrumentos superar a capacidade operacional de gerenciá-los. Consequentemente, o risco operacional aumentou dramaticamente e isso teve um efeito direto sobre a estabilidade geral do sistema financeiro.
Por último, e talvez mais importante, as instituições financeiras não prestaram contas sobre os valores dos ativos de forma suficientemente precisa. Ouvi algumas pessoas argumentarem que a contabilidade pelo valor justo - que atribui valores atuais a ativos e passivos financeiros - é um dos principais fatores que agravam a crise de crédito. Eu vejo isso de forma diferente. Se mais instituições tivessem avaliado adequadamente as suas posições e obrigações desde o começo, elas estariam muito melhor posicionadas para reduzir as suas exposições.
Para o Goldman Sachs, a marcação diária de posições a preços de mercado correntes foi um elemento-chave que contribuiu para a nossa decisão de reduzir riscos num estágio relativamente inicial nos mercados e em instrumentos que estavam se deteriorando. Esse processo pode ser difícil e algumas vezes penoso, mas acredito que esta é uma disciplina que deve definir as instituições financeiras.
Como resultado destas lições e de outras que surgirão a partir desta crise, deveríamos considerar princípios importantes para o nosso setor, para formuladores de políticas e para reguladores. Para o setor, não podemos deixar que a nossa capacidade de inovar supere nossa capacidade de gerenciar. Considerando o tamanho e a natureza interconectada dos mercados, o crescimento nos volumes, a natureza global das transações comerciais e suas características de ativos cruzados, a gestão do risco operacional só ficará mais importante.
As funções de risco e controle precisam ser completamente independentes das unidades de negócios. E a clareza acerca da instância à qual gestores de controle e risco devem se reportar é crucial para manter esta independência. Igualmente importante, os gestores de risco precisam ter estatura pelo menos igual à de seus opostos nas mesas de operações; se houver uma pergunta sobre o valor de uma posição ou desacordo em torno de um limite de risco, a opinião do gestor de risco deve prevalecer sempre.
Compreensivelmente, os planos de remuneração continuam gerando muita irritação e polêmica. Nós reconhecemos que ter um programa de alívio a ativos problemáticos cria um contexto importante para remuneração. Isso explica por que, em parte, nossa equipe diretora executiva optou por não receber uma gratificação em 2008, apesar de a firma ter gerado um lucro.
De forma mais geral, precisamos aplicar parâmetros básicos sobre como remunerar as pessoas no nosso ramo. A porcentagem de gratificações discricionárias concedidas em ações deveria aumentar expressivamente, à medida que aumenta a remuneração total do empregado. O desempenho de um indivíduo deveria ser avaliado ao longo do tempo para evitar assumir risco excessivo. Para garantir isso, todas as concessões de ações devem estar sujeitas à entrega futura e ou exercício diferido. Executivos do alto escalão deveriam ser obrigados a manter a maioria das ações que receberem pelo menos até se aposentarem, ao passo que os prazos de entrega das ações devem continuar em vigor depois que o indivíduo deixar a firma.
Para formuladores de política e reguladores, deve ficar claro que a autorregulamentação tem os seus limites. Nós racionalizamos e justificamos as políticas de preços de risco decrescente a pretexto de ele ser diferente. Agimos assim porque nosso interesse pessoal em preservar e expandir a nossa participação de mercado, como concorrentes, algumas vezes nos cega - especialmente quando a exuberância atinge o seu clímax. No mínimo, solucionar um problema que permeia o sistema, elevar parâmetros ou levar o setor a uma resposta coletiva requer regulamentação central eficaz e o poder congregador dos reguladores.
Parâmetros de capital, crédito e subscrição deveriam estar sujeitos à "regulamentação mais dinâmica". Os reguladores deveriam considerar as exigências e benefícios regulatórios necessários para assegurar um regime que seja suficientemente sólido e ágil para identificar e limitar excessos de mercado adequadamente, particularmente num período de crescimento econômico sustentado. Assim como o banco central dos EUA ajusta as taxas de juros para cima para refrear inquietação econômica, várias referências e índices poderiam ser adequadamente calibrados. Para aumentar a transparência global e ajudar a garantir que o valor contábil realmente signifique valor contábil, os reguladores deveriam exigir que todos os ativos em todas as instituições financeiras sejam avaliados igualmente. Contabilidade pelo valor justo proporciona mais clareza aos investidores no tocante a riscos no balanço patrimonial.
O nível de coordenação e comunicação da supervisão mundial deve refletir a interconexão global dos mercados. Os reguladores devem instituir troca de informações mais vigorosa e de divulgação harmonizada, combinada a regimes de demonstração mais sistêmicos e eficazes para instituições e principais participantes de mercado. Sem isso, os reguladores carecerão das ferramentas essenciais para ajudá-los a compreender os níveis de vulnerabilidade sistêmica no setor bancário e nos mercados financeiros de forma mais abrangente.
Nesse aspecto, todas as combinações potenciais de capital que dependem do funcionamento tranquilo do sistema financeiro e que são grandes o bastante para representarem um fardo sobre eles numa crise deveriam estar subordinadas a alguma medida de regulamentação.
Depois dos choques dos meses recentes e do sofrimento econômico associado, existe um desejo natural e pertinente de reforma abrangente do nosso regime regulatório. Devemos nos opor a uma resposta, porém, que esteja projetada exclusivamente para nos proteger de uma tempestade de 100 anos. Remover o risco completamente do sistema virá ao custo do crescimento econômico. Igualmente, se abandonarmos, ao contrário de regularmos, os mecanismos de mercado criados décadas atrás, como securitização e derivativos, poderemos acabar limitando o acesso ao capital e à proteção eficaz e à distribuição do risco, quando finalmente conseguirmos superar esta crise.
A maior parte do século passado foi definida por mercados e instrumentos que destinam recursos à inovação, recompensam a assunção de risco empresarial e atuam como um catalisador importante para o crescimento econômico. A história demonstrou que um sistema financeiro dinâmico e vibrante está no núcleo de uma economia dinâmica e vibrante.
Temos muito a fazer coletivamente para reconquistar a confiança do público e ajudar a reparar o nosso sistema financeiro para restaurar a estabilidade e a vitalidade. O Goldman Sachs está comprometido a fazê-lo.
Lloyd Blankfein é executivo-chefe do Goldman Sachs
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