QUA, 22/07/2015 - 14:00
ATUALIZADO EM 22/07/2015 - 14:04
Jornal GGN – O governo federal, na figura do ministro da Fazenda Joaquim Levy, está buscando reformar um dos tributos mais importantes e problemáticos do Brasil: o ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços).
Trata-se da maior fonte de receita para os 26 estados brasileiros e para o Distrito Federal. De acordo com o Ministério da Fazenda, a arrecadação é de mais de R$ 320 bilhões por ano, valor superior ao Imposto de Renda.
No entanto, é um tributo de aplicação complexa, que cria uma grande burocracia para as empresas e uma animosidade nas relações entre os estados.
As alíquotas internas são diferenciadas com base no tipo de fato de gerador (tipo de produto ou serviço) e variam de um estado para o outro.
Mas esse não seria o problema, não fosse a discrepância nas alíquotas interestaduais, que criaram condições desiguais de competição e levaram o país à famigerada guerra fiscal.
O Jornal GGN preparou um guia completo sobre o ICMS, para ajudar a entender o problema e a solução proposta pelo governo.
A história do ICMS
Nessa versão que conhecemos hoje, o ICMS surgiu na Constituição de 1988.
No entanto, desde 1965 já existia uma versão anterior do mesmo imposto: o ICM (Imposto sobre Circulação de Mercadorias), que veio substituir o IVC (Imposto sobre Vendas Consignadas).
O IVC, de 1934, era problemático, pois considerava como fato gerador do tributo cada uma das fases de circulação das mercadorias. Sua cobrança era feita em cascata, sempre sobre o preço cheio do produto, nas sucessivas vendas e revendas, desde a aquisição e confecção da matéria-prima até chegar ao consumidor final.
O ICM era um imposto mais moderno, calculado sobre o valor adicionado na circulação de mercadorias. Ou seja, não era cumulativo, incidia apenas sobre o valor agregado em cada fase do processo produtivo.
O que a Constituição de 1988 fez foi incluir no ICM as prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação. Surgiu assim o ICMS, Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços.
As alíquotas internas
As alíquotas internas do ICMS dependem muito do tipo de serviço ou produto e do estado.
Em geral, as alíquotas no sul e sudeste são de 18% e as do norte, nordeste e centro-oeste são de 17%. Mas o ICMS é um imposto de competência estadual. Cada estado tem a liberdade para definir suas próprias alíquotas.
Negócios com potencial para gerar grande número de empregos ou trazer algum outro benefício tendem a ter as alíquotas reduzidas se disso depender sua viabilidade. Da mesma maneira, produtos essenciais, como os itens da cesta básica, costumam ter alíquotas mais baixas.
Por outro lado, produtos cujo uso ou consumo traz riscos à saúde, como cigarros, bebidas alcoólicas, até mesmo armas de fogo e motocicletas de alta performance, podem ter alíquotas de 25, 30, até 38%.
As alíquotas interestaduais
A outra regra do ICMS são as alíquotas interestaduais. Na Constituição, ficou definido que o imposto seria pago na origem. Ou seja, a empresa que vende é que tem que fazer o recolhimento.
Isso era bom para os estados produtores, mais desenvolvidos economicamente, que conseguiam uma arrecadação muito maior.
No entanto, os estados menos desenvolvidos pleiteavam uma parte dessa arrecadação. Isso porque muitas vezes eles próprios eram os consumidores desses produtos e eram obrigados a ver os impostos pagos por seus cidadãos migrando para outros estados.
A solução encontrada foi dividir a arrecadação de forma a cobrar uma parte no estado de origem e outra no estado de destino.
No entanto, pela dinâmica econômica diferente entre os estados mais e menos desenvolvidos, convencionou-se que as alíquotas seriam diferenciadas. Foram considerados desenvolvidos os estados do sul e sudeste. E em desenvolvimento os estados do norte, nordeste e centro-oeste.
Assim, nas operações em que o estado de origem era do sul ou sudeste e o estado de destino do norte, nordeste ou centro-oeste, o recolhimento no estado de origem seria de apenas 7% e o restante da arrecadação seria feito no estado de destino até chegar à alíquota interna.
Por exemplo, um produto saído de São Paulo para a Bahia é taxado a 7% no estado de origem, São Paulo. O restante é recolhido no estado de destino, Bahia. A alíquota interna do ICMS na Bahia é de 17%. Assim, 10% do ICMS devido fica lá.
Por outro lado, nas operações em que o estado de origem era do norte, nordeste ou centro-oeste e o estado de destino do sul e sudeste, o recolhimento no estado de origem seria de 12%. Da mesma maneira, o restante da arrecadação seria feito no estado de destino até chegar à alíquota interna.
Portanto, no exemplo inverso, quando um produto sai da Bahia para São Paulo ele é taxado em 12% de ICMS no estado de origem, Bahia. E o restante é recolhido no estado de destino, São Paulo, até chegar à alíquota interna, que no caso é de 18%. Portanto, 6% do ICMS devido fica em São Paulo.
Essa já era a regra do ICM e foi mantida no ICMS.
A guerra fiscal
E essa foi a origem de um dos principais problemas do ICMS: a guerra fiscal. Quando a tributação de serviços passou a compor o ICM, os estados do norte, nordeste e centro-oeste ganharam um incremento de arrecadação. Com isso, passaram a operar com uma folga fiscal e puderam passar a oferecer descontos no ICMS interno para empresas que se instalassem na região.
A explicação foi dada pelo professor da FGV/EBAPE, Fernando Rezende. “Os estados que não tinham indústria, ou tinham pouca indústria, pouca atividade econômica, passaram a ter uma base grande para arrecadar. Passaram a ter arrecadação incidente sobre combustíveis, energia, telecomunicações. E isso abriu um espaço muito grande para que eles pudessem dar benefícios tributários para atrair atividades e investimentos para essas regiões. Porque eles já não dependiam tanto apenas da arrecadação incidente na atividade industrial”.
No começo deu certo e a estratégia levou desenvolvimento às regiões outrora relegadas pela indústria nacional. Mas eventualmente os estados do sul e sudeste passaram a responder, erodindo as próprias bases de arrecadação para não perder mais seus parques industriais.
Hoje, a guerra fiscal não cumpre propósito nenhum, já que todos os estados podem dar esses benefícios e frequentemente o fazem para não perder base industrial para os ‘concorrentes’.
De acordo com o sócio da KPMG do Brasil na área de Tributos Indiretos e Aduaneiros, Elson Eduardo Bueno, é a diferença na alíquota interestadual que cria a distorção. “O estado não pode mudar a regra da alíquota, baixar a alíquota interestadual para 2%, ele não pode, porque é uma regra mandatória da Constituição. Mas ele pode, se a empresa pagar 12% de ICMS interestadual, dar 10% de crédito presumido. Então, na verdade o que acontece é que a empresa paga 2”, explicou.
“Isso acabou virando uma moeda de barganha para os empresários, para os administradores, porque eles chegam para conversar, vão para a região norte ou nordeste e o governo diz que se eles instalarem as plantas lá vão ter 10% de desconto no ICMS. Os empresários vêm para a região sul e sudeste e dizem quer conseguiram lá esse benefício. O estado desenvolvido acaba também dando 10, ou 11%”, disse.
O que não quer dizer que todas as empresas se beneficiam dessa guerra entre os estados. Empresas que operam com acordos de desoneração de alíquota se beneficiam. Mas outras, que não conseguem as mesmas condições, são prejudicadas. A guerra fiscal também traz desequilíbrio à atividade concorrencial.
É o que detalhou Paulo Enrique Mosquera Lopez, coordenador tributário da Nelm Advogados. “Se eu produzo alguma coisa, por exemplo, no Espírito Santo, que é conhecidamente um estado que tem benefício fiscal de diferimento [prorrogação no pagamento] do ICMS, quando chega em São Paulo eu só vou recolher o diferencial dos 12%. Aqui é 18%, lá fica 12, eu tenho que recolher 6%. Aí eu recolho 6 em São Paulo, mas eu não recolhi 12 no Espírito Santo. Porque ele diferiu isso pra mim. Como eu produzi ou importei para o Espírito Santo, ele faz um diferimento para eu pagar em 60 vezes, começando daqui a cinco anos”.
E qual é a consequência desse benefício? “Eu posso cobrar um preço mais barato na mercadoria que vem do Espírito Santo porque eu tenho uma margem maior, porque só vou pagar isso daqui a cinco anos. Isso se a empresa estiver funcionando. Senão vai virar dívida, aí entra execução fiscal, dívida ativa, tudo aquilo que a gente já conhece e que depois pode virar um parcelamento incentivado. Isso que é a guerra fiscal. Então, São Paulo, como não tem nenhum tipo de diferimento ou de privilégio, acaba se prejudicando”, continuou Lopez.
E São Paulo apenas aceita o prejuízo para suas empresas? Não. “São Paulo não reconhece e glosa quando entra, mandando provar que pagou os 12%. Aí o empresário diz que não pagou porque lá é diferido. São Paulo diz que o Confaz [Conselho Nacional de Política Fazendária], que é o órgão regulador não aprova esse tipo de coisa e não reconhece. E multa, ou glosa a operação. Porque isso tira a competitividade das empresas de São Paulo que pagam os 18%. Elas não conseguem concorrer em igual medida com quem vêm do Espírito Santo”, concluiu o advogado.
Insegurança jurídica
O Supremo Tribunal Federal (STF) tem a faca e o queijo da reforma do ICMS nas mãos.
Isso porque está pronta para ser votada na Corte a Súmula Vinculante 69/2012, que pode tornar inconstitucional “qualquer isenção, incentivo, redução de alíquota ou de base de cálculo, crédito presumido, dispensa de pagamento, ou outro benefício relativo ao ICMS, concedido sem prévia aprovação em convênio celebrado no âmbito do Confaz”.
Isso pode afetar os agentes públicos de uma maneira que desestimule a guerra fiscal, já que quaisquer atos administrativos e judiciais que contrariarem a súmula poderão ser cassados pelo Supremo.
Para atenuar a responsabilidade dos agentes públicos, os estados podem revogar os incentivos e benefícios oferecidos sem autorização do Confaz. Podem, inclusive, cobrar das empresas o ICMS dispensado no passado, com acréscimos.
A solução do governo
A solução proposta agora pelo governo não é nova. Há anos, especialistas defendem a necessidade de pacificação nas relações entre os estados.
Em 2012, o ex-ministro Guido Mantega já falava sobre a ideia de reduzir de forma gradual as alíquotas interestaduais. A proposta era unifica-las, no médio prazo, em uma alíquota interestadual única, de 4%.
O problema é justamente a importância do ICMS para as receitas estaduais. Esse tipo de redução cria uma demanda por compensações. Não é possível diminuir de uma hora para a outra as arrecadações dos estados. É preciso dar tempo para que os orçamentos sejam adequados à nova realidade.
Para isso, o governo decidiu se valer dos efeitos positivos de outro projeto, o substitutivo à Lei nº 7.492, de crimes contra o sistema financeiro, do senador Randolfe Rodrigues.
A proposta vem endurecer as penas nos crimes de evasão de divisas. Mas cria uma oportunidade: oferece uma anistia para quem tiver dinheiro no exterior não declarado à Receita Federal, desde que feita a regularização.
Claro que isso não sairia de graça. O texto prevê a cobrança de 17,5% de tributos e 17,5% de multa. É menos dinheiro do que teria sido cobrado de impostos originalmente, mas é mais do que nada. Muito mais. A estimativa é que os ativos não declarados de brasileiros no exterior cheguem a R$ 400 bilhões.
Do volume recuperado, a metade correspondente aos tributos ficaria com a União. A outra metade, equivalente à multa, seria utilizada para compor um fundo, justamente para compensar a perda dos estados pela redução das alíquotas de ICMS.
A criação desses fundos já foi formalizada por uma Medida Provisória (MP 683), assinada pela presidente Dilma Rousseff no dia 14 deste mês.
A medida segue na mesma direção de outras propostas. Os secretários de Fazenda de todos os estados já chegaram a um acordo (Convênio 70 do Confaz) que estabelece um caminho para a convergência das alíquotas interestaduais de ICMS.
Da mesma forma, o Senado Federal já aprovou um projeto (PLS 130) que trata da convalidação de incentivos fiscais.
Sucesso depende da adesão do mercado
Na opinião dos especialistas ouvidos pelo Jornal GGN, a mudança na regra do ICMS é positiva porque acaba com as distorções no tributo e põe fim à guerra fiscal.
No entanto, é preciso verificar se o fundo de compensação dos estados vai contar com recursos suficientes para o curto prazo. Os números apresentados pelo governo são apenas estimativas. Para se concretizarem, é necessário que a regularização do dinheiro não declarado se confirme.
Pela proposta, o tributo cobrado agora é menor do que teria sido originalmente. De acordo com Paulo Enrique Mosquera Lopez, da Nelm Advogados, se esse valor evadido tivesse sido declarado pelas pessoas jurídicas envolvidas, teria sido taxado de Imposto de Renda, CSLL, PIS, COFINS, ICMS, além das tarifas de câmbio para mandar para o exterior.
“Todo esse mecanismo até chegar lá fora é muito mais caro do que os 35% que o governo está cobrando agora. Mas é o mercado que vai fazer essa conta, não é o governo. Se você já conseguiu que seu dinheiro esteja lá fora, por que você vai colocar ele pra dentro de novo, vai se colocar sob escrutínio da Receita, ficar sujeito a um cadastro?”, questionou. “O mercado vai entender muito rápido se vale a pena ou não. Mas a parte jurídica, da consequência jurídica, tributária, penal, deve ser um pouco mais demorada”.
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